Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2010

Anotações de um copista

E ntão começou a criar personagens em sua mente, mas eram tão passageiros, tão embrionários que mais pareciam clarões. Eram criaturas em passagem, como que saídos de um romance de Robert Walser, o escritor andarilho que não tinha moradia fixa, não possuía livros e escrevia em papéis usados. “Há vinte anos que não tenho mais livros. Também queimei meus papéis. Rabisco o instante... Retenho o que quero”, escreve Monsieur Teste, o enigmático personagem de Paul Valéry. P or falar em andarilhos, lembro que o poeta Mario Quintana morou a vida inteira em pequenos quartos de hotéis. Nunca teve casa própria ou alugada. Costumava vê-lo em suas caminhadas pela Rua da Praia, no centro de Porto Alegre. Seus poemas têm uma simplicidade que fazem com que o leitor os subestime. É um erro. Mas talvez seus versos sejam como clarões na noite escura. “Os poemas são pássaros que chegam, não se sabe de onde e pousam no livro que lês”, escreveu em Esconderijos do tempo , l

A necessidade da ficção

N os dias atuais, creio que mais importante do que saber o que é e o que não é literatura, no sentido de ficção, talvez seja perguntar sobre sua utilidade. Afinal, para que serve a ficção num mundo regido pelas notícias e pelo apego ao documental? Recorro ao discurso que o escritor peruano Mario Vargas Llosa fez quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2010, em 7 de dezembro último. P ara Vargas Llosa, ler é protestar contra as insuficiências da vida: “Quien busca en la ficción lo que no tiene, dice, sin necesidad de decirlo, ni siquiera saberlo, que la vida tal como es no nos basta para colmar nuestra sed de absoluto, fundamento de la condición humana, y que debería ser mejor. Inventamos las ficciones para poder vivir de alguna manera las muchas vidas que quisiéramos tener cuando apenas disponemos de una sola.”     A literatura será capaz de nos tornar melhores? “Seríamos peores de lo que somos sin los bue

A orelha anônima de Lezama Lima

N a década de 1990, quando escrevia orelhas anônimas para uma editora de São Paulo, caiu-me nas mãos as provas de A dignidade da poesia , de José Lezama Lima (1910-1976). Minha tarefa era, em pouquíssimos dias, ler o material e escrever um texto para a orelha do livro a ser lançado em breve. Na época, a obra do poeta e ensaísta cubano era-me inteiramente desconhecida e o contato com esta estranha coletânea de ensaios foi uma experiência de leitura fascinante. L embrei disso ontem pela manhã, durante o café, ao ler no Sabático artigo de Carlos Granés sobre o autor de Paradiso , cujo centenário de nascimento é hoje. Fui à estante à procura do meu exemplar e pude reler o breve texto anônimo que escrevi então: “o leitor brasileiro tem a oportunidade de descobrir por que é impossível permanecer indiferente à força inusitada de suas metáforas ou ao barroquismo crioulo do seu estilo”. N ão sei se escreveria isso hoje: afinal, texto de orelha é texto pub

História e tragédia de Bruno Schulz

N uma tarde de abril de 1933, um homem de estatura pequena e andar curvado chega a um pequeno hotel de Varsóvia. Na recepção está Magdalena Gross, uma escultora de renome na cidade, que administra o hotel da família, local conhecido por ser ponto de encontro de intelectuais e escritores. O hóspede vem somente para o pernoite e seu objetivo é um só: entregar os originais de seu livro a Zofia Nalkowska, escritora influente nos meios literários da Polônia. É através de Magdalena que o hóspede pretende chegar até Zofia. Impressionada com a obstinação do obscuro e modesto professor, ela aceita intermediar o contato. O candidato a escritor terá dez minutos para mostrar a que veio. Corre até a casa da escritora para um encontro rápido. Em pé, ele começa a ler a primeira página de seu livro. Logo ela o interrompe e pede para que o visitante a deixe sozinha com seu manuscrito. Lê apenas 30 páginas, mas é o suficiente para con

O Fidel Castro da literatura brasileira

D e toda esta polêmica envolvendo o Jabuti de 2010, que deu a Leite Derramado , de Chico Buarque, o prêmio de melhor ficção do ano, em detrimento do primeiro lugar na categoria, Se eu fechar os olhos agora , de Edney Silvestre, duas constatações me parecem inevitáveis. A primeira delas é a acertada crítica de Ségio Machado, o editor da Record, de que o Jabuti sucumbiu à era do escritor celebridade. “Se eu amanhã publicar um livro infantil da Xuxa, é capaz que eu ganhe o infanto juvenil. Esse prêmio, do jeito que está sendo disputado, poderia ser feito na plateia do Faustão. Ou do Silvio Santos. Porque não tem absolutamente nenhum critério”, declarou à Folha de S. Paulo. A segunda constatação diz respeito à figura de Chico Buarque, cuja consagração no campo da música (inquestionável, diga-se) acabou por contaminar o julgamento de sua produção no campo da literatura. Transformado em grife, livro de Chico é livro de Chico, e isso independe do mérit

Martín Fierro, vanguarda e utopia

T alvez uma das melhores partes de Modernidade periférica , de Beatriz Sarlo, seja o capítulo 4, Vanguarda e utopia , pois é nele que a autora reconstitui, com rigor e beleza, um dos momentos cruciais da modernidade argentina: o espírito de renovação trazido por revistas como Prisma , Proa e Martín Fierro. Esta revista, aliás, tornou-se sinônimo de uma época de efervescência literária na Argentina e, mais do que isso, delineou os rumos da vanguarda na capital do país, consolidando o processo de autonomização do campo cultural ao promover um reposicionamento dos agentes e das ideias em voga. Tanto no aspecto ideológico quanto no estético, a geração de ecritores como Hidalgo, Macedonio e Borges, descobre e divulga novos princípios de valor literário, principalmente no que tange à questão da identidade cultural, cristalizado naquilo que Sarlo denomina de “ criollismo urba