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Mostrando postagens de 2013

Cantiga de certezas para 2014

Há muito tempo que deixei de ler poemas; há muito tempo que já nem escuto mais música..... Pois eis que encontro numa velha página de Manuel Bandeira este poema, que tomo como a minha cantiga de certezas para encarar 2014. O poema chama-se "O Martelo", e foi publicado por Bandeira em 1940. Durante muitos anos (já distantes) lia coisas assim.... Quem sabe o que me espera em 2014? Feliz novo ano a todos! "As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cotidianos. O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei. Dentro da noite No cerne duro da cidade Me sinto protegido. Do jardim do convento Vem o pio da coruja. Doce como um arrulho de pomba. Sei que amanhã quando acordar Ouvirei o martelo do ferreiro Bater corajoso o seu cântico de certezas". (Manuel Bandeira, “Lira dos cinqüentanos”, 1940). M.S.V.

Meu livro do ano

Trecho da Ringstrasse, em Viena. Ao fundo, o prédio da Universidade (Foto: M.S.V.)  Todo final de ano a mídia elabora suas listas de melhores e piores. Minha lista se resume a dois ou três livros, lidos em 2013 mas não necessariamente publicados nesse ano. Foram livros que me acompanharam ao longo de todo o ano que agora termina, lidos, relidos, sublinhados, anotados. O primeiro deles é A lebre com olhos de âmbar , de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca, trad. de Alexandre Barbosa de Souza). Já comentei aqui sobre essa obra, que toma como fio narrativo a história de uma coleção de miniaturas japonesas feitas de madeira ou marfim, os netsuquês, muito usados em quimonos, para contar a história de uma família de banqueiros judeus que viveram em Viena nas primeiras décadas do século 20. Da micro-história dessa  família, o leitor  é conduzido à macro-história da primeira metade do século 20. Detenho-me num trecho que considero especial em função da tese que escrevo atualmente, em que

No ponto onde as águas se separam

O crítico francês Roland Barthes (Foto: Divulgação) Muito embora a aritmética o informe de que já ultrapassou em muito a metade de sua vida, sente-se no meio, bem na metade de uma existência que se dilacera em um antes e um depois. Nas anotações de Roland Barthes dos cursos para o Collège de France, ele encontra o seguinte trecho e anota: “experimento hoje essa sensação-certeza de viver o meio do caminho, de me encontrar nessa espécie de ponto onde as águas se separam, seguindo duas costas divergentes.” (Barthes, R. “Da vida à obra”, In: A preparação do romance, Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pág. 5. Trad. de Leyla Perrone-Moisés). Entre o antes e o depois está o trabalho inacabado, o estudo que não escreveu, embora rabisque-o todos os dias em sua mente. “Vontade de esvaziar o escaninho dos compromissos, dos artigos, dos pareceres, dos textos obrigatórios”, diz. Deixar que no escaninho só entre aquilo que estiver relacionado a este livro, a esta tese que anota, sublin

Murakami, a corrida e a escrita

O escritor Haruki Murakami (Foto: Divulgação) Sabemos que todo escritor, seja ele um ficcionista, biógrafo ou ensaísta, para ser bem sucedido no que faz, precisa de talento. Mas isso não é tudo e podemos compensar a falta ou o pouco talento com duas outras qualidades: concentração e perseverança. “Felizmente essas duas disciplinas – concentração e perseverança – são diferentes do talento, uma vez que podem ser adquiridas e aperfeiçoadas por meio de treinamento”, escreve Haruki Murakami, em Do que eu falo quando eu falo de corrida . Neste relato autobiográfico, o escritor japonês, que já tem vários de seus romances publicados no Brasil (Editora Alfaguara), vale-se de sua experiência de corredor de longas distâncias (participou da maratona de Nova York, entre outras) para refletir sobre o ato de escrever, no seu caso, romances. Leio as observações de Murakami pensando em meus próprios desafios de escrita, no momento em que desenvolvo uma pesquisa de longa duração e que ainda est

Maneiras de ver/modos de ler

A imaginação é um caminho para o conhecimento. No Prefácio a Stendhal , o crítico francês Roland Barthes reafirma seus métodos e maneiras de ler uma obra: a sensação enquanto ponto de partida do conhecimento, que era também, segundo Barthes, o caminho de Stendhal. Primeiro é preciso se deixar deslumbrar pelo fenômeno; só depois vem o juízo, “que retoma a sensação, detalhando-a, e acaba por transformá-la em percepção, atividade verdadeira em que todo homem se empenha”. (Roland Barthes, Inéditos , Vol. 2 – Crítica, p. 137). Esse esquema interpretativo revela-se fértil e necessário, num momento em que o trabalho dos conceitos transformou-se em mera ferramenta com usos generalizados. Por mais de uma vez escutei a frase, dita por colegas: “A análise do discurso é ótima, pois resolve qualquer coisa”. De minha parte, tenho sempre procurado adotar o seguinte procedimento: é o objeto que funda o método, e não o contrário. Pode não resolver muito a situação, mas pelo menos diminui um pouco o

Comunicação e literatura em fricção

Será possível (re)aproximar a comunicação da literatura? Pois este é um dos propósitos da coletânea Pensamento comunicacional latino-americano através da literatura (São Paulo: Intercom, 2013). O livro reúne trabalhos apresentados XVI Colóquio Internacional da Escola Latino-americana de Comunicação, realizado de 08 a 10 de agosto de 2012, na UNESP de Bauru. O tema do encontro, “pensamento comunicacional latino-americano através da literatura”, foi concebido com a finalidade buscar o diálogo entre duas áreas que, por definição, estão em lugares opostos e, não raro, sempre em contenda ou, no mínimo, em fricção. O livro traz o melhor do que foi apresentado no Colóquio. A seguir, transcrevo trechos da Introdução ao livro, intitulada “Comunicação, ficção e a função integradora dos saberes” (p.15-21): “Dividido em quatro partes, inicia com uma homenagem a Jorge Fernández feita por seu filho, o equatoriano Marcelo Fernández, seguida por artigo de José Marques de Melo, que destaca a traj

Evocação do Danúbio

O rio Danúbio, em Viena. Em suas memórias, Elias Canetti relembra o Danúbio de sua cidade natal, Ruschuk, na Bulgária, local onde viviam pessoas das mais diferentes nacionalidades, e onde era possível ouvir, num único dia, “sete ou oito idiomas diferentes”. Cidade portuária do Baixo Danúbio, Ruschuk atraía pessoas de toda parte e o rio era motivo de conversa e inspiração para os mais variados relatos e causos. “Havia histórias sobre aqueles anos em que o Danúbio congelou; sobre as viagens de trenó pelo gelo, até a Romênia [na outra margem do rio]; sobre os lobos famintos que assediavam os cavalos dos trenós”, escreve Canetti em A língua absolvida (Companhia das Letras, trad. Kurt Jahn). Canetti lembra que, navegando rio acima, chegava-se a Viena, a capital da Europa Central, que era vista como o limite entre a Europa e o Império Otomano. “Quando alguém viajava para Viena, subindo o Danúbio, dizia-se que viajava para a Europa”, escreve Canetti. Mas o Danúbio é muito mais do qu

O escrevente aos cinqüenta (o que faz um escritor?)

Das memórias de Elias Canetti: “Numa cidade como Salzburg, as pessoas são receptivas aos escritores”. Mas o que faz de um escritor um escritor? Raduan Nassar escreveu um ou dois livros e abandonou a literatura. Tornou-se canônico. E há escritores que permanecem vivos mais por sua atuação na mídia do que por suas criações. Tornam-se marketing. *** Planejou durante muitos anos uma trajetória a ser construída com a publicação regular, contínua de seus projetos de escrita. A vida acadêmica e o excesso de trabalho o conduziram a outra trilha. Depois de publicar um primeiro livro de ensaios em 1995 e de voltar em 2002 com um estudo sobre um importante crítico literário, não conseguiu dar continuidade a uma trajetória que apenas se esboçara. Passaram-se, desde então, dez anos, gastos com a inserção na vida acadêmica, as aulas na graduação e na pós-graduação, o redirecionamento de pesquisas e de publicações, a orientação de alunos, a gestão, as guerras, a infâmia, os aborrecimentos. É ass

O escrevente aos cinqüenta (a maldição de Montano)

Abre uma página de O mal de Montano , de Henrique Vila-Matas. Seus olhos passeiam pelas obsessões literárias do escritor catalão, mas seu pensamento se perde no quarto escuro da memória, este “baú de espantos” em que se desenha o malogro existencial e material de seus projetos de escrita. “O primeiro malogro está ligado à tardividade de minha formação, e que me constitui enquanto ser”, recorda. O segundo malogro é mais palpável: diz respeito às condições materiais da vida. Obrigado a ganhar o sustento, primeiro no jornalismo, depois na sala de aula, seus projetos de escrita sempre estiveram submetidos ao aspecto instrumental dessas atividades. “Haverá tempo?”, pergunta. *** Retorna a esse livro que é em tudo um incômodo, a começar pelo título: Crítica e verdade , de Roland Barthes. Este pequeno volume, que comprou quando tinha 21 anos, sempre exerceu sobre ele um fascínio e uma resistência à leitura. Folheia o livro e constata que há vários trechos sublinhados, marcas de leitur