Sérgio Augusto escreve no caderno Aliás, de O Estado de S. Paulo, que Desonra, de J.M. Coetzee, foi o melhor romance que leu “nos últimos dez anos”. Exagero. É verdade que o livro incomoda, e muito, e também é verdade que uma das funções da grande arte é justamente incomodar o leitor, fazê-lo ir além do puro entretenimento. Mas considerá-lo o melhor romance dos últimos dez anos é esquecer os últimos Phillip Roth ou ignorar Roberto Bolaño ou Le Clézio, cujas obras são por demais representativas da atual literatura.
No mesmo artigo, "Vozes d’África", o jornalista escreve que a África do Sul, sede da Copa do Mundo que inicia em junho de 2010, tornou-se “um dos países politicamente mais estáveis e democráticos do mundo, um modelo para os vizinhos, uma meca turística, um pólo de produção cinematográfica”. Pode até ser isso mesmo, mas a sociedade que surge da obra de Coetzee não é essa maravilha toda. Não se eliminam de uma hora pra outra os ressentimentos culturais fomentados durante décadas de apartheid. Talvez a principal qualidade da obra do autor sul-africano esteja em trazer à tona tudo aquilo que restou vivo depois que o regime de segregação racial foi oficialmente abolido naquele país.
Outra voz da África que não pode ser esquecida: Mia Couto, de Moçambique. Crítico e ao mesmo tempo um defensor da comunidade lusófona, Mia Couto diz que essa comunidade pode ser bastante útil como reação à homogeneização cultural provocada pela globalização. Vale conferir a entrevista que o moçambicano deu à revista Bula.http://www.revistabula.com/posts/entrevistas/entrevista-mia-couto.
Nesses dias um tanto sem sentido, entre o Natal e o Ano Novo, costuma acontecer algo curioso: andando de uma estante e outra da biblioteca, descubro livros esquecidos que aguardam há muito uma leitura, ou releitura. Sim, é preciso ter sempre surpresas esperando por nós entre as estantes da biblioteca. A escrita ou a vida, de Jorge Semprun, O cavalo perdido e outras histórias, de Felizberto Hernández e Monsieur Teste, de Paul Valéry. Três autores e distintos caminhos ficcionais: literatura feita de memória, de sonho e de reflexão crítica. Prova de que o território do ficcional é inesgotável e vai ao encontro de todos os tipos de leitores.
Em 2009 a Academia Sueca continuou surpreendendo ao agraciar a alemã Herta Müller com o Nobel de Literatura. Ela tem um único livro lançado no Brasil, O compromisso, lançado em 2004 pela editora Globo, com tradução de Lya Luft.
M.S.V.
domingo, 27 de dezembro de 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
A escritura é a moral da forma
A frase acima é Roland Barthes, o admirado crítico francês que nos anos 1960 e 1970 foi muito lido. Pois foi com o autor de Fragmentos de um discurso amoroso que despertei para essa “divina increnca” que se chama crítica literária.
Ainda está vivo em minha memória o momento em que, numa feira de livros da longínqua Porto Alegre, no não menos distante ano de 1982, comprei um exemplar de Crítica e Verdade. Poucos títulos resumem tão bem o problema central desta atividade: que relação existe, afinal, entre crítica e verdade? Chega-se à verdade de uma obra por meio do exercício critico?
Agora, relendo O grau zero da escritura, percebo que este pequeno livro é uma preciosidade. No texto que abre esse ensaio, Barthes desenvolve o conceito de escritura, ligando-o às noções de língua e estilo. Enquanto aquela está aquém da literatura, o estilo está “quase além”, escreve.
“O estilo tem sempre algo de bruto: é uma forma sem destinação, o produto de um impulso, não de uma intenção, é como que uma dimensão vertical e solitária do pensamento”, sentencia mais adiante.
O estilo é, a um só tempo, liberdade e prisão. A voz própria de um escritor resulta do rompimento com a normatividade da língua e, ao mesmo tempo, se faz no interior dela. Não podemos sair da linguagem, assim como não podemos nos despir de nossa pele. Que relação há entre crítica e verdade? A escritura é a moral da forma.
M.S.V.
Ainda está vivo em minha memória o momento em que, numa feira de livros da longínqua Porto Alegre, no não menos distante ano de 1982, comprei um exemplar de Crítica e Verdade. Poucos títulos resumem tão bem o problema central desta atividade: que relação existe, afinal, entre crítica e verdade? Chega-se à verdade de uma obra por meio do exercício critico?
Agora, relendo O grau zero da escritura, percebo que este pequeno livro é uma preciosidade. No texto que abre esse ensaio, Barthes desenvolve o conceito de escritura, ligando-o às noções de língua e estilo. Enquanto aquela está aquém da literatura, o estilo está “quase além”, escreve.
“O estilo tem sempre algo de bruto: é uma forma sem destinação, o produto de um impulso, não de uma intenção, é como que uma dimensão vertical e solitária do pensamento”, sentencia mais adiante.
O estilo é, a um só tempo, liberdade e prisão. A voz própria de um escritor resulta do rompimento com a normatividade da língua e, ao mesmo tempo, se faz no interior dela. Não podemos sair da linguagem, assim como não podemos nos despir de nossa pele. Que relação há entre crítica e verdade? A escritura é a moral da forma.
M.S.V.
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
Anotações de um copista
Para que serve a literatura? Borges costumava responder a esta pergunta com outra: ninguém se questiona sobre a utilidade do canto de um passarinho ou das cores do céu ao entardecer, dizia.
No ensaio que abre a coletânea A cultura do romance (recém chegado às livrarias, e que comentei aqui outro dia), o escritor peruano Mario Vargas Llosa argumenta, com sabedoria e perspicácia, que a literatura e, em especial, o romance, não é um passatempo de luxo, destinado a uns poucos felizardos (geralmente mulheres) que dispõem de tempo livre para a leitura desinteressada. Desses argumentos, copio:
“A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com seu destino, de todo contentes com a vida do modo como a vivem. A literatura é alimento dos espíritos indóceis e propagadora da inconformidade, um refúgio para quem tem muito ou muito pouco na vida, onde é possível não ser infeliz, não se sentir incompleto, não ser frustrado nas próprias aspirações. Cavalgar junto ao esquálido Rocinante e a seu desregrado cavaleiro pelas terras da Mancha, percorrer os mares em busca da baleia branca com o capitão Ahab, tomar o arsênico com Emma Bovary ou transformar-se em inseto com Gregor Samsa, é um modo astuto que inventamos para nos mitigar a nós mesmos pelas ofensas e imposições desta vida injusta que nos obriga a ser sempre os mesmos enquanto gostaríamos de ser muitos, tantos quantos fossem necessários para satisfazer os desejos incandescentes de que somos possuídos.” (“É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”, In: A cultura do romance, p.26. São Paulo: Cosacnaify, 2009, trad. de Denise Bottmann).
Numa época em que os amantes da literatura podem ser comparados aos membros de uma pequena seita e num tempo em que as paredes das casas não têm mais estantes com livros, o argumento de Vargas Llosa é uma iluminação, mais do que necessária nesses tempos sombrios para a cultura literária.
M.S.V.
No ensaio que abre a coletânea A cultura do romance (recém chegado às livrarias, e que comentei aqui outro dia), o escritor peruano Mario Vargas Llosa argumenta, com sabedoria e perspicácia, que a literatura e, em especial, o romance, não é um passatempo de luxo, destinado a uns poucos felizardos (geralmente mulheres) que dispõem de tempo livre para a leitura desinteressada. Desses argumentos, copio:
“A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com seu destino, de todo contentes com a vida do modo como a vivem. A literatura é alimento dos espíritos indóceis e propagadora da inconformidade, um refúgio para quem tem muito ou muito pouco na vida, onde é possível não ser infeliz, não se sentir incompleto, não ser frustrado nas próprias aspirações. Cavalgar junto ao esquálido Rocinante e a seu desregrado cavaleiro pelas terras da Mancha, percorrer os mares em busca da baleia branca com o capitão Ahab, tomar o arsênico com Emma Bovary ou transformar-se em inseto com Gregor Samsa, é um modo astuto que inventamos para nos mitigar a nós mesmos pelas ofensas e imposições desta vida injusta que nos obriga a ser sempre os mesmos enquanto gostaríamos de ser muitos, tantos quantos fossem necessários para satisfazer os desejos incandescentes de que somos possuídos.” (“É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”, In: A cultura do romance, p.26. São Paulo: Cosacnaify, 2009, trad. de Denise Bottmann).
Numa época em que os amantes da literatura podem ser comparados aos membros de uma pequena seita e num tempo em que as paredes das casas não têm mais estantes com livros, o argumento de Vargas Llosa é uma iluminação, mais do que necessária nesses tempos sombrios para a cultura literária.
M.S.V.
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
O poema e a realidade
Quando se é jovem, e os sonhos ainda não passaram pelo crivo da realidade, nem os projetos foram postos à prova, então lemos poemas e nos emocionamos com eles.
Mas quando os barcos – bêbados de desejo – são arrastados por contra-ventos e marés e ameaçam bater em terras desconhecidas...
Quando já não se imagina que, da leitura de um simples soneto, poderá haver emoção, o surpreendente acontece. Uma lágrima solitária verte e escorre pelo rosto vincado por tantas tardes e manhãs, “que enchem de cinza o coração da gente”.
O que mais pedir de um poema? Basta que nos chacoalhe com seu cântico de certezas. Como na emoção despertada pela leitura do soneto XVI de A rua dos cataventos, de Mario Quintana.
M.S.V.
“Triste encando das tardes borralheiras
Que enchem de cionza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...
A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus... o frio que a pobrezinha sente!
Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...
Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...
Mas quando os barcos – bêbados de desejo – são arrastados por contra-ventos e marés e ameaçam bater em terras desconhecidas...
Quando já não se imagina que, da leitura de um simples soneto, poderá haver emoção, o surpreendente acontece. Uma lágrima solitária verte e escorre pelo rosto vincado por tantas tardes e manhãs, “que enchem de cinza o coração da gente”.
O que mais pedir de um poema? Basta que nos chacoalhe com seu cântico de certezas. Como na emoção despertada pela leitura do soneto XVI de A rua dos cataventos, de Mario Quintana.
M.S.V.
“Triste encando das tardes borralheiras
Que enchem de cionza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...
A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus... o frio que a pobrezinha sente!
Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...
Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...
domingo, 25 de outubro de 2009
A cultura do romance

Nenhum outro gênero renega tanto sua própria natureza quanto o romance. Desacreditado, quase sempre em crise, ele atravessou os séculos e sobreviveu a ataques de todos os tipos, do Estado, da Religião e até da própria crítica, que por mais de uma vez lhe decretou a morte ou o acusou de falsificar a realidade.
O fato é que, desde meados do século XIX, quando o gênero se fixou entre os leitores das metrópoles européias, com os ingleses Defoe e Fielding, o romance construiu mais do que uma história: há mesmo uma cultura do romance manifesta em certas constantes, como o individualismo, o mito do herói, a formação da personalidade (bildungsroman), a interioridade, o sujeito, o narrador, a viagem.
Esses aspectos e muitos outros estão contemplados na gigantesca e fascinante coleção O Romance, coordenada pelo crítico italiano Franco Moretti, cujo primeiro volume (A cultura do Romance) foi lançado recentemente no país (Cosac Naify, 1.120 págs., trad. de Denise Bottman, R$ 130). Organizada em cinco volumes, a coleção conta com 178 colaboradores de diversas nacionalidades. Do Brasil estão Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima.
A idéia do organizador é dissecar o gênero romance a partir de uma visão multidisciplinar. Para isso, foram convidados a colaborar não só especialistas em literatura, mas de áreas como antropologia, sociologia, filosofia, história e até geografia.
O projeto de Moretti aspira a ser muito mais do que uma história da literatura (afinal, quantas já temos?). Seu desejo é, sobretudo, ser uma reação ao close reading (a leitura fechada da obra) e ao processo de hierarquização de obras e valores feito pela ideia de cânone (leia-se Harold Bloom). Nada mais necessário para os dias de hoje.
M.S.V.
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Crítica literária e jornalística
Em entrevista recente, fui perguntado sobre as diferenças entre a crítica jornalística e a crítica literária. O assunto é importante, pois mexe com fatores cruciais para se entender os rumos atuais da cultura letrada. Respondi que toda crítica literária é, em maior ou menor grau, jornalística, pois tem por função servir de intermediação entre o autor e o público.
O Brasil possui uma vasta tradição de crítica literária publicada em jornais, e mais do que isso: produzida para o jornal. Depois, é claro, essa crítica vira livro, mas aí já é outra coisa.
E por que existe essa proximidade? Porque o crítico precisa comunicar algo para o público. Há uma dimensão publicista da crítica literária que não pode ser esquecida. Ora, o que acontece quando o crítico literário deixa de escrever para o público? Não precisa publicar mais em jornal, e sim em revistas acadêmicas. Por isso sustento essa proximidade entre a crítica jornalística e a literária. São parte da mesma matriz discursiva.
É claro que essa crítica jornalístico-literária quase não existe mais hoje, pois a imprensa só abre espaço para resenhas. E a resenha é um gênero distinto, mais factual, sem profundidade, sem análise, somente um comentário breve.
Enfim, o que temos hoje é, de um lado, o resenhismo rápido e superficial; de outro, a crítica acadêmica que fica restrita à universidade, aos congressos etc. Uma crítica mais ‘técnica’, sem preocupação com a linguagem, sem estilo. Uma crítica esotérica, fechada, para poucos, para os professores.
E o público que ainda gosta de literatura? Este está órfão, pois não pode contar mais com o crítico de sólida formação e que ainda escreve com clareza e inteligência. É evidente que o jornalista profissional não consegue cumprir esta função, pois não tem nem formação, nem tempo.
Portanto, a única possibilidade que vejo para o crítico literário hoje é a universidade, já que no jornalismo não sobra tempo para a formação, para a leitura. Escrever crítica demanda tempo e dedicação. Por outro lado, os especialistas em teoria literária só escrevem para os especialistas.
Acredito que o crítico é um intelectual que possui uma função pública a desempenhar, a de intermediário entre o autor e o público.
Nesse sentido, o crítico deve ser um hospedeiro do artista, mas um hospedeiro que possui autonomia diante das pressões do mercado e visão crítica. Enfim, um sujeito independente, e isso custa muito caro.
M.S.V.
O Brasil possui uma vasta tradição de crítica literária publicada em jornais, e mais do que isso: produzida para o jornal. Depois, é claro, essa crítica vira livro, mas aí já é outra coisa.
E por que existe essa proximidade? Porque o crítico precisa comunicar algo para o público. Há uma dimensão publicista da crítica literária que não pode ser esquecida. Ora, o que acontece quando o crítico literário deixa de escrever para o público? Não precisa publicar mais em jornal, e sim em revistas acadêmicas. Por isso sustento essa proximidade entre a crítica jornalística e a literária. São parte da mesma matriz discursiva.
É claro que essa crítica jornalístico-literária quase não existe mais hoje, pois a imprensa só abre espaço para resenhas. E a resenha é um gênero distinto, mais factual, sem profundidade, sem análise, somente um comentário breve.
Enfim, o que temos hoje é, de um lado, o resenhismo rápido e superficial; de outro, a crítica acadêmica que fica restrita à universidade, aos congressos etc. Uma crítica mais ‘técnica’, sem preocupação com a linguagem, sem estilo. Uma crítica esotérica, fechada, para poucos, para os professores.
E o público que ainda gosta de literatura? Este está órfão, pois não pode contar mais com o crítico de sólida formação e que ainda escreve com clareza e inteligência. É evidente que o jornalista profissional não consegue cumprir esta função, pois não tem nem formação, nem tempo.
Portanto, a única possibilidade que vejo para o crítico literário hoje é a universidade, já que no jornalismo não sobra tempo para a formação, para a leitura. Escrever crítica demanda tempo e dedicação. Por outro lado, os especialistas em teoria literária só escrevem para os especialistas.
Acredito que o crítico é um intelectual que possui uma função pública a desempenhar, a de intermediário entre o autor e o público.
Nesse sentido, o crítico deve ser um hospedeiro do artista, mas um hospedeiro que possui autonomia diante das pressões do mercado e visão crítica. Enfim, um sujeito independente, e isso custa muito caro.
M.S.V.
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Pequena crônica de um grande gênero
Entre todos os gêneros de escrita, a crônica talvez seja o mais livre e, ao mesmo tempo, mais difícil de ser definido. E isto se deve, creio, à amplitude estilística e temática que a caracterizam. Na imprensa brasileira, por exemplo, tudo aquilo que é publicado sob a rubrica de crônica acaba se incorporando a esse caldeirão de estilos em que cabe tudo, ou quase.
O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, por exemplo, classifica de crônica todos os seus escritos jornalísticos. Onde quer que escreva e sobre o assunto que for, será sempre crônica, costuma repetir em suas entrevistas.
No Brasil, a crônica é praticada desde o início de nossa literatura. Há quem diga que se trata de um gênero tipicamente brasileiro, assim como o ensaio é identificado como um gênero tipicamente inglês. É evidente que não somos os únicos a escrever crônica e nem o ensaio é exclusividade dos praticantes do idioma de Shakespeare. São apenas associações entre estilo e cultura.
Iniciei com uma referência à amplitude estilística e temática da crônica. Vejamos como isso funciona. Machado de Assis, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga: todos pertencem ao primeiro time da literatura brasileira e todos escreveram crônica durante a vida, muitas vezes até para ganhar o sustento. E ao fazê-lo, cada um deles imprimiu seu próprio estilo ao gênero.
Tanto é que quando falamos do Machado cronista, logo pensamos na política brasileira na época do Segundo Reinado. Mário de Andrade e Manuel Bandeira escreveram crônicas mais ligadas a aspectos históricos e culturais, enquanto Drummond imprimia poesia em seus textos para jornal.
Dos citados, Rubem Braga tem uma particularidade: sua obra maior é a crônica e a ela dedicou todo o seu talento criativo. Como conseqüência, podemos considerá-lo, sem medo de errar, o maior cronista da literatura brasileira. São antológicas as páginas de “O conde e o passarinho”, “A borboleta amarela” ou “Ai de ti, Copacabana”, só pra ficar em três exemplos magistrais.
Pano rápido para a atualidade: Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Zuenir Ventura, Contardo Calligaris e o já citado Carlos Heitor Cony. De novo temos cinco estilos e temáticas diferenciadas. Humor, comportamento, política, cotidiano, conflitos existenciais. Não há limites para a crônica, ainda que seu ponto de partida seja quase sempre o episódico, a atualidade, a vida ao rés-do-chão.
Mas o desafio maior de todo cronista está em ultrapassar esse elemento episódico que a inspirou e falar de perto ao leitor, sempre naquele tom de despretensão e oralidade que torna a crônica um gênero tão peculiar. Como lembra o crítico Antonio Candido, nenhuma literatura se sustenta apenas com cronistas. Mas, penso eu, nenhuma literatura e nenhum jornalismo podem prescindir do olhar irônico, poético e sorrateiro do cronista, que sabe como poucos fisgar o leitor.
M.S.V.
O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, por exemplo, classifica de crônica todos os seus escritos jornalísticos. Onde quer que escreva e sobre o assunto que for, será sempre crônica, costuma repetir em suas entrevistas.
No Brasil, a crônica é praticada desde o início de nossa literatura. Há quem diga que se trata de um gênero tipicamente brasileiro, assim como o ensaio é identificado como um gênero tipicamente inglês. É evidente que não somos os únicos a escrever crônica e nem o ensaio é exclusividade dos praticantes do idioma de Shakespeare. São apenas associações entre estilo e cultura.
Iniciei com uma referência à amplitude estilística e temática da crônica. Vejamos como isso funciona. Machado de Assis, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga: todos pertencem ao primeiro time da literatura brasileira e todos escreveram crônica durante a vida, muitas vezes até para ganhar o sustento. E ao fazê-lo, cada um deles imprimiu seu próprio estilo ao gênero.
Tanto é que quando falamos do Machado cronista, logo pensamos na política brasileira na época do Segundo Reinado. Mário de Andrade e Manuel Bandeira escreveram crônicas mais ligadas a aspectos históricos e culturais, enquanto Drummond imprimia poesia em seus textos para jornal.
Dos citados, Rubem Braga tem uma particularidade: sua obra maior é a crônica e a ela dedicou todo o seu talento criativo. Como conseqüência, podemos considerá-lo, sem medo de errar, o maior cronista da literatura brasileira. São antológicas as páginas de “O conde e o passarinho”, “A borboleta amarela” ou “Ai de ti, Copacabana”, só pra ficar em três exemplos magistrais.
Pano rápido para a atualidade: Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Zuenir Ventura, Contardo Calligaris e o já citado Carlos Heitor Cony. De novo temos cinco estilos e temáticas diferenciadas. Humor, comportamento, política, cotidiano, conflitos existenciais. Não há limites para a crônica, ainda que seu ponto de partida seja quase sempre o episódico, a atualidade, a vida ao rés-do-chão.
Mas o desafio maior de todo cronista está em ultrapassar esse elemento episódico que a inspirou e falar de perto ao leitor, sempre naquele tom de despretensão e oralidade que torna a crônica um gênero tão peculiar. Como lembra o crítico Antonio Candido, nenhuma literatura se sustenta apenas com cronistas. Mas, penso eu, nenhuma literatura e nenhum jornalismo podem prescindir do olhar irônico, poético e sorrateiro do cronista, que sabe como poucos fisgar o leitor.
M.S.V.
domingo, 27 de setembro de 2009
Apresentação de Edward Said

Uma apresentação das ideias e da trajetória de Edward Said (1935-2003) implica, necessariamente, fazer referência às suas origens. Isto por que suas raízes o situam na encruzilhada dos problemas atuais entre Oriente e Ocidente e no coração dos conflitos do Oriente Médio. Said nasceu em Jerusalém, mas não é judeu, é palestino de origem, mas sua família professava a fé cristã. A etnia árabe não o transformou em muçulmano. A isso tudo, some-se uma formação que teve início no Cairo e se prolongou por Nova York, onde Said acabou se fixando em definitivo ao se tornar professor na Universidade de Columbia.
Intelectual humanista, sua trajetória foi marcada por uma posição de crítica tanto em relação ao establishment político e cultural do Ocidente, quanto em relação ao mundo árabe. Autor de dezenas de livros abordando sempre as relações entre cultura e política, tornou-se mundialmente conhecido a partir da publicação de Orientalismo, em 1978. Nesta obra, procurou desconstruir as concepções dualistas, que dividem o planeta de modo estanque em Oriente e Ocidente.
Para Said, o orientalismo é um estilo de pensamento: “um modo de pensar o Oriente que ajudou a subordiná-lo através do conhecimento enviesado produzido sobre ele e que deu ao Ocidente o poder de ditar o que era significativo sobre o ‘outro’, classificá-lo junto com outros de sua espécie e colocá-lo ‘no seu lugar’.
Nos anos 1990, a tese desenvolvida em Orientalismo foi expandida para o cenário dos ex-impérios coloniais da Inglaterra, França e Estados Unidos, resultando no magnífico estudo Cultura e imperialismo (1993), que trata da relação entre cultura e império no contexto da descolonização.
A estas duas obras, que podem e devem ser lidas em conjunto, vem somar-se Covering Islam, de 1997, que estuda a cobertura dada pela mídia para os conflitos envolvendo países que, de uma forma ou de outra, pertencem ao chamado círculo do islamismo. O objetivo aqui é formular uma crítica aos critérios de noticiabilidade que norteiam a cobertura jornalística de conflitos que ocorrem em países como Irã, Iraque e Afeganistão, assim como o próprio conflito árabe-israelense. “Como a mídia ocidental determina o modo como nós vemos o resto do mundo?”, perguntas Said. A resposta passa pela apresentação de narrativas alternativas à visão hegemônica e pela construção de novas perspectivas da história.
Contra as concepções essencialistas de mundo, Said recomenda uma tomada de consciência sobre o lugar ocupado por aquele que tem a posse do discurso. Ecoando Foucault, Said sustenta que toda fala tem um lugar. E todo conhecimento ocupa um lugar de poder.
M.S.V.
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
A história de um derrotado
Desonra, de J.M. Coetzee, foi finalmente adaptado para o cinema. Desde o seu lançamento, em 1999, muitos diretores tentaram comprar os direitos deste romance do escritor sul-africano. Coetzee somente autorizou a adaptação recentemente, e coube aos também sul-africanos Steve Jacobs e Anna Monticelli o desafio de transpor para as telas esta inquietante e devastadora história, que se passa na África do Sul pós-apartheid.
Em Desonra, o ressentimento, os ódios de classe e o conformismo são as forças que ocasionam os conflitos entre personagens que habitam uma sociedade dilacerada. O apartheid acabou; ficou a terra devastada por conflitos não resolvidos.
John Malkovich interpreta David Lurie, um professor de literatura que, aos 52 anos, tornou-se um derrotado. Leva uma vida sem sobressaltos, burocrática, conformada. Pragmático, ele resolve sua solidão recorrendo a uma prostituta, a quem visita regularmente uma vez por semana.
Sua rotina desmorona depois que ele se envolve com uma de suas alunas. Perde o cargo de professor e abandona o ambiente politicamente correto da universidade para se refugiar no interior do país, na fazenda onde mora sua filha.
Li esse romance há alguns anos, de um fôlego só, sem anotar uma única palavra, nenhum mesmo um traço nas margens do livro.
A leitura de Desonra incomoda, mas é impossível largar o livro. Coetzee sabe prender o leitor com sua prosa límpida, suas palavras medidas e imagens devastadoras.
Agora o drama do professor arruinado está nas telas. Não vejo a hora de conferir.
M.S.V.
Em Desonra, o ressentimento, os ódios de classe e o conformismo são as forças que ocasionam os conflitos entre personagens que habitam uma sociedade dilacerada. O apartheid acabou; ficou a terra devastada por conflitos não resolvidos.
John Malkovich interpreta David Lurie, um professor de literatura que, aos 52 anos, tornou-se um derrotado. Leva uma vida sem sobressaltos, burocrática, conformada. Pragmático, ele resolve sua solidão recorrendo a uma prostituta, a quem visita regularmente uma vez por semana.
Sua rotina desmorona depois que ele se envolve com uma de suas alunas. Perde o cargo de professor e abandona o ambiente politicamente correto da universidade para se refugiar no interior do país, na fazenda onde mora sua filha.
Li esse romance há alguns anos, de um fôlego só, sem anotar uma única palavra, nenhum mesmo um traço nas margens do livro.
A leitura de Desonra incomoda, mas é impossível largar o livro. Coetzee sabe prender o leitor com sua prosa límpida, suas palavras medidas e imagens devastadoras.
Agora o drama do professor arruinado está nas telas. Não vejo a hora de conferir.
M.S.V.
sábado, 29 de agosto de 2009
Anotações de um copista
Dois inesquecíveis começos de romances, para relembrar ou descobrir.
“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Adormeço’. E, meia hora depois, despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela”. (Em busca do tempo perdido,Vol. 1, de Marcel Proust).
“Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno da solidão”. (O Continente 1, de Erico Veríssimo)
M.S.V.
“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Adormeço’. E, meia hora depois, despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela”. (Em busca do tempo perdido,Vol. 1, de Marcel Proust).
“Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno da solidão”. (O Continente 1, de Erico Veríssimo)
M.S.V.
quarta-feira, 29 de julho de 2009
"O cacto", de Bandeira
Houve tempo em que a leitura de poemas era para mim um hábito quase diário. Tenho a impressão de que a poesia é mais necessária quando somos jovens e estamos ainda em busca de um caminho.
Entre os poetas brasileiros, Manuel Bandeira talvez tenha sido o autor ao qual mais retornei para releituras. E não havia mediação crítica nessas leituras. Só muito mais tarde, já aluno de Teoria Literária na USP, é que acrescentei à minha experiência de leitura as análises do crítico literário e professor Davi Arrigucci Jr.
Foi num de seus cursos que conheci O cacto, um pequeno poema que o professor Davi analisava em aula. De seu método, guardei para sempre a atitude que todo leitor deve ter diante da poesia, antes mesmo da interpretação: trata-se da escavação filológica, procedimento aberto por Erich Auerbach. Publicado em 1925, O cacto impressiona pela beleza áspera que exala de seus versos.
“Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia:
- Era belo, áspero, intratável.
Este poema é exemplar da peculiaridade da poesia de Manuel Bandeira, obra forjada, no dizer de Arrigucci Jr., num momento decisivo, “intenso e complexo da história cultural brasileira na década de vinte, quando se renova a consciência artística nacional e vão se firmando em nosso meio as tendências da arte moderna”. (O cacto e as ruínas, p.11)
Concebida em meio aos embates entre tradição e renovação, arcaísmo e modernismo, velho e novo, atraso e desenvolvimento, a poética de Bandeira cataliza e expressa as contradições históricas da década de 20. Revela também o diálogo do poeta com a tradição literária, visível no segundo e terceiro versos da primeira estrofe, em que aparece o drama de Laocoonte sendo devorado pelas serpentes.
A Divina Comédia, de Dante, está presente no episódio do conde Ugolino, que, na prisão, devora os próprios filhos para não morrer de fome (Canto XXXIII, do Inferno).
O cacto foi escrito em Petrópolis, RJ, em 1925. É mesmo um poema belo, áspero e surpreendente até hoje.
M.S.V.
Entre os poetas brasileiros, Manuel Bandeira talvez tenha sido o autor ao qual mais retornei para releituras. E não havia mediação crítica nessas leituras. Só muito mais tarde, já aluno de Teoria Literária na USP, é que acrescentei à minha experiência de leitura as análises do crítico literário e professor Davi Arrigucci Jr.
Foi num de seus cursos que conheci O cacto, um pequeno poema que o professor Davi analisava em aula. De seu método, guardei para sempre a atitude que todo leitor deve ter diante da poesia, antes mesmo da interpretação: trata-se da escavação filológica, procedimento aberto por Erich Auerbach. Publicado em 1925, O cacto impressiona pela beleza áspera que exala de seus versos.
“Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia:
- Era belo, áspero, intratável.
Este poema é exemplar da peculiaridade da poesia de Manuel Bandeira, obra forjada, no dizer de Arrigucci Jr., num momento decisivo, “intenso e complexo da história cultural brasileira na década de vinte, quando se renova a consciência artística nacional e vão se firmando em nosso meio as tendências da arte moderna”. (O cacto e as ruínas, p.11)
Concebida em meio aos embates entre tradição e renovação, arcaísmo e modernismo, velho e novo, atraso e desenvolvimento, a poética de Bandeira cataliza e expressa as contradições históricas da década de 20. Revela também o diálogo do poeta com a tradição literária, visível no segundo e terceiro versos da primeira estrofe, em que aparece o drama de Laocoonte sendo devorado pelas serpentes.
A Divina Comédia, de Dante, está presente no episódio do conde Ugolino, que, na prisão, devora os próprios filhos para não morrer de fome (Canto XXXIII, do Inferno).
O cacto foi escrito em Petrópolis, RJ, em 1925. É mesmo um poema belo, áspero e surpreendente até hoje.
M.S.V.
quinta-feira, 2 de julho de 2009
Um Orkut do livro?
É muito bem-vindo o surgimento de O livreiro, uma rede social dedicada ao mundo do livro. Lançada na Flip deste ano, em Paraty, o projeto, ainda em fase experimental, pretende ser um agregador de conteúdo ligado à leitura e ao livro.
Criado pela Infoglobo, empresa que edita o jornal O Globo, entre outras publicações, O Livreiro pretende ser um espaço de relacionamento para todos aqueles que gostam de ler, independente de gênero, preferência, faixa etária etc. A home do site explica que se trata de “uma rede social para quem gosta de livro. De qualquer tipo: poesia, história, música, internet, comportamento, clássicos, quadrinhos, filosofia, gastronomia”.
Além de criar páginas pessoais, os internautas poderão expandir a teia adicionando amigos, criando comunidades e conectando-se aos mais variados tópicos, sempre ligados ao mundo do livro. Num país de poucos leitores, como o Brasil, a iniciativa deve ser não apenas aplaudida, mas disseminada entre os jovens.
M.S.V.
Criado pela Infoglobo, empresa que edita o jornal O Globo, entre outras publicações, O Livreiro pretende ser um espaço de relacionamento para todos aqueles que gostam de ler, independente de gênero, preferência, faixa etária etc. A home do site explica que se trata de “uma rede social para quem gosta de livro. De qualquer tipo: poesia, história, música, internet, comportamento, clássicos, quadrinhos, filosofia, gastronomia”.
Além de criar páginas pessoais, os internautas poderão expandir a teia adicionando amigos, criando comunidades e conectando-se aos mais variados tópicos, sempre ligados ao mundo do livro. Num país de poucos leitores, como o Brasil, a iniciativa deve ser não apenas aplaudida, mas disseminada entre os jovens.
M.S.V.
segunda-feira, 29 de junho de 2009
Anotações de um copista
Manhã tranqüila, à mesa de trabalho para ler, sublinhar, marcar e anotar os movimentos de minha leitura. À moda de um copista medieval, transcrevo passagens, anoto fragmentos. Ao acaso, vou construindo uma teia de vastas emoções e pensamentos imperfeitos.
Zigmunt Bauman é minha leitura de auto-ajuda. A metáfora da vida líquida, marcada pela precariedade, "vivida em condições de incerteza constante", é uma imagem reconfortante para enfrentar os desafios da vida presente.
Estar sempre pronto a reiniciar, a livrar-se das coisas com despreendimento, com o mesmo desapego que empregamos quando adquirimos algo. Escreve Bauman:
"A vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las." (Vida líquida, p. 8)
Em outra passagem, Bauman enumera as atitudes daqueles que dominam a arte da vida líquida: "aquiescência à desorientação, imunidade à vertigem, adaptação ao estado de tontura, tolerância com a falta de itinerário e direção, e com a duração indefinida da viagem." (Idem, p.10)
M.S.V.
Zigmunt Bauman é minha leitura de auto-ajuda. A metáfora da vida líquida, marcada pela precariedade, "vivida em condições de incerteza constante", é uma imagem reconfortante para enfrentar os desafios da vida presente.
Estar sempre pronto a reiniciar, a livrar-se das coisas com despreendimento, com o mesmo desapego que empregamos quando adquirimos algo. Escreve Bauman:
"A vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las." (Vida líquida, p. 8)
Em outra passagem, Bauman enumera as atitudes daqueles que dominam a arte da vida líquida: "aquiescência à desorientação, imunidade à vertigem, adaptação ao estado de tontura, tolerância com a falta de itinerário e direção, e com a duração indefinida da viagem." (Idem, p.10)
M.S.V.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Descobrir Cortázar
Morto há 25 anos em Paris, o argentino Julio Cortázar é um escritor para ser descoberto sem pressa. Autor de “O jogo da Amarelinha”, “História de Cronópios e de Famas” e “Bestiário”, Cortázar criou uma obra difícil de ser definida. Construiu um verdadeiro continente literário cuja palavra-chave para descortiná-lo talvez seja o "fantástico".
A seguir, um link do Youtube onde o escritor fala brevemente sobre a criação de uma de suas obras-primas, História de Cronópios e de Famas.
M.S.V.
A seguir, um link do Youtube onde o escritor fala brevemente sobre a criação de uma de suas obras-primas, História de Cronópios e de Famas.
M.S.V.
quarta-feira, 6 de maio de 2009
Carpeaux e o método
“Um professor de matemática – é Lichtenberg que conta a história – explicou certa vez aos estudantes um teorema, acrescentando: ‘Existe uma excelente demonstração desse teorema, mas não tenho muito tempo e não me sinto hoje bem disposto. Vocês me conhecem. Sabem que sou fidedigno. Juro que o teorema é verdadeiro. E basta’.
Gostaria de empregar esse mesmo ‘método’ de demonstração, jurando que O trapicheiro, o primeiro volume do roman-fleuve de Marques Rebelo, é muito bom; que é uma obra de valor extraordinário: e basta. Tempo, para demonstrá-lo, me sobra e disposição não me falta. Mas há vários outros motivos para justificar minha atitude axiomática. Antes de tudo: em que pesem os métodos científicos de crítica (dos quais aprovo muitos), não acredito que o valor de uma obra de arte possa jamais ser matematicamente demonstrado. A ciência não admite julgamentos de valor (v. Max Weber e Scheler); o desconhecimento dessa verdade leva os adeptos da crítica científica a prometer coisas que, depois, não sabem cumprir, fazendo crítica exatamente assim como os ‘impressionistas’ menos científicos. A mentalidade científica prefere basear suas explicações na descrição dos fatos; e basta”.
O trecho acima é uma verdadeira iluminação sobre o tipo de relação que um crítico literário deve estabelecer com as obras que comenta. É também representativo da concepção de crítica de Otto Maria Carpeaux. Foi extraído de “Suma de época”, artigo incluído na coletânea Livros na mesa, de 1960.
M.S.V.
Gostaria de empregar esse mesmo ‘método’ de demonstração, jurando que O trapicheiro, o primeiro volume do roman-fleuve de Marques Rebelo, é muito bom; que é uma obra de valor extraordinário: e basta. Tempo, para demonstrá-lo, me sobra e disposição não me falta. Mas há vários outros motivos para justificar minha atitude axiomática. Antes de tudo: em que pesem os métodos científicos de crítica (dos quais aprovo muitos), não acredito que o valor de uma obra de arte possa jamais ser matematicamente demonstrado. A ciência não admite julgamentos de valor (v. Max Weber e Scheler); o desconhecimento dessa verdade leva os adeptos da crítica científica a prometer coisas que, depois, não sabem cumprir, fazendo crítica exatamente assim como os ‘impressionistas’ menos científicos. A mentalidade científica prefere basear suas explicações na descrição dos fatos; e basta”.
O trecho acima é uma verdadeira iluminação sobre o tipo de relação que um crítico literário deve estabelecer com as obras que comenta. É também representativo da concepção de crítica de Otto Maria Carpeaux. Foi extraído de “Suma de época”, artigo incluído na coletânea Livros na mesa, de 1960.
M.S.V.
sábado, 2 de maio de 2009
Dois poemas de Quintana
No próximo dia 5 de maio completam-se 15 anos desde a morte do poeta Mario Quintana (1906-1994). Por acreditar que a releitura de um livro é a maior homenagem que se pode prestar a um autor, releio Esconderijos do tempo.
Publicado em 1986, quando o autor já tinha uma trajetória consolidada no contexto da poesia brasileira, o volume traz 49 poemas bastante reveladores tanto do estilo quanto das temáticas que marcaram a obra poética de Quintana.
Como nos dois poemas transcritos a seguir, extraídos da belíssima Coleção Mario Quintana, organizada pela crítica literária Tânia Franco Carvalhal para a Editora Globo.
Ah, mundo...
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
-- rotos e felizes! –
por essas estradas do mundo.
Preparativos para a viagem
Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
Se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
-- a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face do Senhor...
os próprios Anjos te invejarão.
Aqui estão a ironia e o humor corrosivo diante da morte e o gosto pelas situações do cotidiano, sempre marcadas por um tratamento que busca fundir o real com o surreal. A poesia de Quintana está repleta de passadismo e de nostalgia.
Seu livro de estréia, A rua dos cataventos, foi mal recebido pela crítica, pois era feito de sonetos, numa época em que o Modernismo era hegemônico e o verso livre vigorava como o novo padrão de composição poética.
Mas não se pode ler a poesia de Quintana a partir dos pressupostos modernistas. Outros critérios poéticos precisam ser instaurados. Por isso a obra do poeta gaúcho necessita de uma releitura.
M.S.V.
Publicado em 1986, quando o autor já tinha uma trajetória consolidada no contexto da poesia brasileira, o volume traz 49 poemas bastante reveladores tanto do estilo quanto das temáticas que marcaram a obra poética de Quintana.
Como nos dois poemas transcritos a seguir, extraídos da belíssima Coleção Mario Quintana, organizada pela crítica literária Tânia Franco Carvalhal para a Editora Globo.
Ah, mundo...
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
-- rotos e felizes! –
por essas estradas do mundo.
Preparativos para a viagem
Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
Se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
-- a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face do Senhor...
os próprios Anjos te invejarão.
Aqui estão a ironia e o humor corrosivo diante da morte e o gosto pelas situações do cotidiano, sempre marcadas por um tratamento que busca fundir o real com o surreal. A poesia de Quintana está repleta de passadismo e de nostalgia.
Seu livro de estréia, A rua dos cataventos, foi mal recebido pela crítica, pois era feito de sonetos, numa época em que o Modernismo era hegemônico e o verso livre vigorava como o novo padrão de composição poética.
Mas não se pode ler a poesia de Quintana a partir dos pressupostos modernistas. Outros critérios poéticos precisam ser instaurados. Por isso a obra do poeta gaúcho necessita de uma releitura.
M.S.V.
sexta-feira, 1 de maio de 2009
Sobre um conto de Roberto Bolaño
B. é um escritor desconhecido que anda sem rumo entre cidades da França e Bélgica. Vive mudando de hotel, lê romances que depois joga no lixo, toma notas mas não escreve nada. Gosta de gêneros menores e de escritores desconhecidos.
B. é o narrador de “Vagabundo na França e na Bélgica”, conto de Putas Assassinas (Companhia das Letras, 2008), do chileno Roberto Bolaño. Os personagens deste conto não têm nome, apenas iniciais, numa indicação de que os seres que habitam a narrativa já não têm mais identidade.
Existência marcada pela extraterritorialidade, B é espanhol de origem, lê romances policiais em francês, idioma que mal conhece, assiste filmes falados em inglês e percorre os sebos em busca de autores esquecidos. A seguir, um pequeno trecho significativo do conto:
“Na manhã seguinte pega um trem com destino a Paris. Hospeda-se no hotel da rue Saint-Jacques, em outro quarto, e dedica os primeiros dias a procurar nos sebos um livro qualquer de André du Bouchet. Não acha nada. Du Bouchet, como Henry, o de Masnuy, foi apagado do mapa. No quarto dia não sai mais à rua. Manda subir comida ao seu quarto, mas quase não come. Termina de ler o último romance que comprou e joga-o no cesto do lixo.” (pág. 91).
À primeira vista, parece estarmos diante de uma literatura que se alimenta da própria literatura, como em Borges. Mas não é isso. Nenhum personagem do escritor argentino joga um romance no lixo. Há um desprezo e uma descrença pela escrita literária que lembram os comentários de Monsieur Teste, de Valéry, que queimava seus cadernos de anotações.
M.S.V.
B. é o narrador de “Vagabundo na França e na Bélgica”, conto de Putas Assassinas (Companhia das Letras, 2008), do chileno Roberto Bolaño. Os personagens deste conto não têm nome, apenas iniciais, numa indicação de que os seres que habitam a narrativa já não têm mais identidade.
Existência marcada pela extraterritorialidade, B é espanhol de origem, lê romances policiais em francês, idioma que mal conhece, assiste filmes falados em inglês e percorre os sebos em busca de autores esquecidos. A seguir, um pequeno trecho significativo do conto:
“Na manhã seguinte pega um trem com destino a Paris. Hospeda-se no hotel da rue Saint-Jacques, em outro quarto, e dedica os primeiros dias a procurar nos sebos um livro qualquer de André du Bouchet. Não acha nada. Du Bouchet, como Henry, o de Masnuy, foi apagado do mapa. No quarto dia não sai mais à rua. Manda subir comida ao seu quarto, mas quase não come. Termina de ler o último romance que comprou e joga-o no cesto do lixo.” (pág. 91).
À primeira vista, parece estarmos diante de uma literatura que se alimenta da própria literatura, como em Borges. Mas não é isso. Nenhum personagem do escritor argentino joga um romance no lixo. Há um desprezo e uma descrença pela escrita literária que lembram os comentários de Monsieur Teste, de Valéry, que queimava seus cadernos de anotações.
M.S.V.
sábado, 28 de março de 2009
Perfume numa página de Proust
Há certos livros que nos acompanham durante anos em releituras sucessivas. Por quase uma década, Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, foi meu livro de cabeceira. Naquela época, nos anos oitenta, carregava sempre comigo um dos sete volumes da Busca.
Certa vez, durante uma viagem, um vidro de perfume que trazia na mala quebrou, molhando o exemplar de Proust. Quando abri minha bagagem no hotel, as páginas de À sombra da raparigas em flor, o segundo volume da série, na bela tradução de Mario Quintana, exalavam o perfume derramado.
As folhas de Proust secaram e os anos passaram, mas até hoje quando abro aquele exemplar o suave perfume me transporta de imediato para aquele quarto de hotel.
As circunstâncias e o motivo da viagem desapareceram da memória, mas o cenário do hotel, aquele insignificante momento, em que nada de especial acontecera, está até hoje vívido na lembrança. Trata-se apenas uma cena, ativada pelo toque daquelas páginas até hoje manchadas de perfume. É a memória involuntária, o fenômeno recriado a todo instante naquela obra, e que tanto fascina seus leitores.
M.S.V.
Certa vez, durante uma viagem, um vidro de perfume que trazia na mala quebrou, molhando o exemplar de Proust. Quando abri minha bagagem no hotel, as páginas de À sombra da raparigas em flor, o segundo volume da série, na bela tradução de Mario Quintana, exalavam o perfume derramado.
As folhas de Proust secaram e os anos passaram, mas até hoje quando abro aquele exemplar o suave perfume me transporta de imediato para aquele quarto de hotel.
As circunstâncias e o motivo da viagem desapareceram da memória, mas o cenário do hotel, aquele insignificante momento, em que nada de especial acontecera, está até hoje vívido na lembrança. Trata-se apenas uma cena, ativada pelo toque daquelas páginas até hoje manchadas de perfume. É a memória involuntária, o fenômeno recriado a todo instante naquela obra, e que tanto fascina seus leitores.
M.S.V.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Naipaul e o enigma da chegada

Poucos escritores têm uma trajetória tão marcada pela distância de sua terra natal quanto V. S. Naipaul. Nascido em Trinidad, neto de brâmane e filho de um jornalista, Naipaul foi estudar em Oxford, na Inglaterra, quando tinha 18 anos. O que era para ser uma temporada de estudos, transformou-se numa permanência que dura até hoje. Mais do que isso: Vidiadhar Surajprasad (o V.S.) fez deste afastamento de suas origens a matéria-prima de sua ficção, que lhe valeu em 2001 o Prêmio Nobel de Literatura (foto).
Em O enigma da chegada, livro que releio agora após dez anos, Naipaul faz um acerto de contas com o passado. Isto por que, para ele, abraçar a carreira de escritor significava ao mesmo tempo adotar o inglês como idioma e romper com as próprias origens. “A pequenez colonial que não se coadunava com a grandeza de minha ambição”, lembra o escritor a certa altura deste livro.
O tema de O enigma da chegada gira em torno deste desejo de realizar-se como escritor num país estrangeiro, e isso implica refletir sobre a própria trajetória:
“Eu me tornara escritor após um longo período de preparação! E então descobri que ser escritor não era (como eu imaginava) um estado -- de competência, ou realização, ou fama, ou contentamento – aonde se chegava ou onde se permanecia.” Esta carreira trazia uma angústia específica: todo o trabalho que um livro me custara, todos os desafios e satisfações que ele me proporcionara, o tempo depois levava-os embora. E, com a passagem do tempo, eu sentia que minhas realizações passadas zombavam de mim; pareciam pertencer a uma época de vigor, que agora havia terminado para sempre. Voltavam o sentimento de vazio, a ianquietação; e tornava-se necessário mais uma vez, com base em meus recursos interiores apenas, empreender este processo exaustivo de novo.”
Este é o enigma de tornar-se escritor. Este é o enigma da chegada de Naipaul.
M.S.V.
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
Literatura em perigo não é novidade

Eis um livro que não está nem estará em minha mesa. Trata-se do recém lançado A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov (Trad. de Caio Meira, Difel, 96 p,., R$ 25). Não, caro leitor, não se trata de arrogância, desprezo ou falta de interesse pelo tema que, aliás, é dos mais importantes de nossa época.
Nesta obra, Todorov – um dos principais expoentes do estruturalismo francês – argumenta que o ensino e a pesquisa de literatura, feito por críticos e professores, está contribuindo para torná-la cada vez menos relevante na sociedade. Em síntese, argumenta que nas escolas e universidades (ele aborda exclusivamente a situação francesa, mas o que diz de lá vale igualmente para o que ocorre aqui) a preocupação metodológica e teórica tomou o lugar dos textos ficcionais.
Ora, qualquer um que conheça o que se passa num curso de Letras sabe que isso não é novidade. Para se institucionalizar enquanto área do conhecimento, as sub-áreas acadêmicas ligadas ao ensino e ao estudo das literaturas necessitaram constituir-se teoricamente. Aos poucos, os cursos de literatura foram se tornando cada vez mais teóricos e distanciando-se tos textos ficcionais.
Sei que estou generalizando e corro o risco de ser injusto com muitos dos excelentes professores de literatura que sabiamente conseguem combinar as duas coisas. Eu mesmo já tive aulas na USP com mais de um desses mestres, mas também já freqüentei cursos de literatura comparada que comparavam apenas teoria e nada diziam da criação literária.
Não é preciso ler este livro para saber que a literatura corre perigo. O assunto é antigo. Que o diga Paul Valéry, como nesta passagem incômoda mas verdadeira:
“Entre esses homens sem grande apetite pela poesia, que não conhecem a necessidade dela e que não a teriam inventado, quer o infortúnio que figure uma boa quantidade desses cuja tarefa ou destino é julgá-la, discorrer sobre ela; e, em suma, distribuir o que eles não tem. A isso dedicam, com freqüência, toda a sua inteligência e todo o seu zelo: e disso podem resultar conseqüências temíveis.”
Caro senhor Todorov; o senhor não tem o direito de publicar um livro como esse, pelo simples fato de que contribuiu para esse estado de coisas. Ou será que devemos esquecer todos os seus artigos?
M.S.V.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
Um abrigo contra o esquecimento
É preciso um talento incomum para transformar uma história de amor numa narrativa esteticamente convincente. Carta a D., de André Gorz (Trad. Celso Anzann Jr., Annablume/CosacNaify, 80 págs. R$ 29,00) consegue sair-se muito bem deste desafio.
Movido pelo desejo de recontar a trajetória de uma relação de quase seis décadas para compreender o sentido de sua própria existência, o narrador (autobiográfico) se lança na difícil tarefa de elaborar o passado. No entanto, o ato de lembrar não tem o sentido de culto ao passado: o que se vê são as lembranças iluminando o presente.
E sem preocupações de ordem cronológica. Uma lembrança puxa outra, num fluxo por vezes aleatório, mas sempre comovente. Como o trecho que descreve o momento em que ele e sua mulher de toda a vida, Dorine, se conheceram, na Paris do pós-guerra.
“Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista”, escreve. “Depois da terceira ou quarta saída, eu afinal beijei você”, relembra Gorz, em meio a relatos sobre as dificuldades para sobreviver e, mais ainda, viver como intelectual numa cidade como Paris, sem ter relações com pessoas influentes.
André Gorz e Dorine viveram juntos durante quase seis décadas “obsessivamente dedicados um ao outro”. Ao recontar a história desse amor e dessa comunhão incomuns, Gorz revela sua crença na escrita enquanto mecanismo de compreensão do sentido de uma vida.
Escrita esta que, em sua concretude, promete ser um abrigo contra o esquecimento e contra a morte. Ao que Gorz conclui: “eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos”.
M.S.V.
Movido pelo desejo de recontar a trajetória de uma relação de quase seis décadas para compreender o sentido de sua própria existência, o narrador (autobiográfico) se lança na difícil tarefa de elaborar o passado. No entanto, o ato de lembrar não tem o sentido de culto ao passado: o que se vê são as lembranças iluminando o presente.
E sem preocupações de ordem cronológica. Uma lembrança puxa outra, num fluxo por vezes aleatório, mas sempre comovente. Como o trecho que descreve o momento em que ele e sua mulher de toda a vida, Dorine, se conheceram, na Paris do pós-guerra.
“Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista”, escreve. “Depois da terceira ou quarta saída, eu afinal beijei você”, relembra Gorz, em meio a relatos sobre as dificuldades para sobreviver e, mais ainda, viver como intelectual numa cidade como Paris, sem ter relações com pessoas influentes.
André Gorz e Dorine viveram juntos durante quase seis décadas “obsessivamente dedicados um ao outro”. Ao recontar a história desse amor e dessa comunhão incomuns, Gorz revela sua crença na escrita enquanto mecanismo de compreensão do sentido de uma vida.
Escrita esta que, em sua concretude, promete ser um abrigo contra o esquecimento e contra a morte. Ao que Gorz conclui: “eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos”.
M.S.V.
sábado, 31 de janeiro de 2009
John Updike, o retratista da vida americana

Houve um tempo em que os livros de John Updike (1932-2009) não saíam de minha mesa. Do escritor americano, morto dia 27 de janeiro, aos 76 anos, guardo com admiração as belas passagens de suas memórias, intituladas de Consciência à flor da pele, da crítica literária reunida em Bem perto da costa ou dos contos de Uma outra vida.
A reputação de Updike veio com a extensa série Coelho (Coelho cai, Coelho corre, Coelho cresce, Coelho em crise, Coelho se cala), protagonizada por um ex-campeão de basquete chamado Harry Rabbit Angstrom. Escrita ao longo de mais de três décadas, entre os anos 1960-1990, a série sintetiza a concepção de mundo do americano médio. Rabbit é um sujeito alienado politicamente, consumidor de TV e de alimentos congelados e morador de Cidadezinhas (título, aliás, de seu mais recente livro lançado no Brasil), ricas e provincianas, moralistas e religiosas.
Esteve no Brasil em 1992 e dois anos depois publicou Brazil, romance ambientado no país, em que faz uma releitura bastante livre da lenda de Tristão e Isolda. Updike tem uma escrita límpida e uma sintaxe muito bem amarrada. Soube como poucos retratar o trivial e o prosaico com beleza estilística, sem rebuscamentos ou digressões.
Agora que estou prestes a fixar residência em Bauru, no meio-oeste do estado de São Paulo, talvez seja uma boa oportunidade -- e também uma homenagem a um escritor que já li muito -- voltar à obra de Updike. Acho que vou marcar este retorno com o recém lançado Cidadezinhas.
M.S.V.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
Austerlitz: notas de leitura
Austerlitz, de W.G. Sebald, é construído a partir de um duplo movimento: temos um narrador que conta seus encontros com Austerlitz e, a este relato, feito de lembranças, justapõe-se as recordações do próprio Austerlitz, professor aposentado, especialista em arquitetura do capitalismo, que, por sua vez, conta para o primeiro narrador histórias de suas viagens, descobertas, observações relativas aos mais variados assuntos, como um ornitólogo, um aviador, sua infância etc.
A narrativa flui, assim, em camadas de recordações, que tanto podem ser reflexões sobre sua própria trajetória, seus projetos passados e seus sentimentos presentes, como o momento em que reflete sobre o ato de ler:
“Como eu gostava, disse Austerlitz, de me sentar na companhia de um livro até noite fechada, até que não conseguisse mais decifrar uma palavra e os meus pensamentos começassem a girar em círculos, e como eu me sentia seguro sentado à escrivaninha de casa na noite escura, apenas observando a ponta do lápis à luz da lâmpada seguir como se por desígnio próprio e com absoluta fidelidade a sua própria sombra, que deslizava regularmente da esquerda para a direita e linha após linha sobre o papel pautado”. (p.123)
Uma das paixões de Austerlitz é a fotografia. Gostava de distribuir suas pequenas e gastas fotos sobre uma mesa grande laqueada de cinza-fosco, na ante-sala de sua casa em Londres. Ali sentava e ficava acionando a memória, “dispondo aquelas fotografias ou outras de sua coleção com a parte de trás voltada para cima, como se fosse uma partida de paciência, e que então, sempre admirado com o que via, ele as virava uma a uma, empurrava-as de lá para cá e uma sobre as outras, arrumava-as em uma ordem que resultava de um certo ar de família, ou ainda as retirava do jogo até que nada mais restasse senão o tampo cinza da mesa, ou até que ele, exausto de tanto pensar e recordar, era obrigado a deitar-se na otomana”. (p.120-121)
O livro, aliás, é ilustrado com uma série de fotos que parecem ter saído da coleção particular de Sebald.
M.S.V.
A narrativa flui, assim, em camadas de recordações, que tanto podem ser reflexões sobre sua própria trajetória, seus projetos passados e seus sentimentos presentes, como o momento em que reflete sobre o ato de ler:
“Como eu gostava, disse Austerlitz, de me sentar na companhia de um livro até noite fechada, até que não conseguisse mais decifrar uma palavra e os meus pensamentos começassem a girar em círculos, e como eu me sentia seguro sentado à escrivaninha de casa na noite escura, apenas observando a ponta do lápis à luz da lâmpada seguir como se por desígnio próprio e com absoluta fidelidade a sua própria sombra, que deslizava regularmente da esquerda para a direita e linha após linha sobre o papel pautado”. (p.123)
Uma das paixões de Austerlitz é a fotografia. Gostava de distribuir suas pequenas e gastas fotos sobre uma mesa grande laqueada de cinza-fosco, na ante-sala de sua casa em Londres. Ali sentava e ficava acionando a memória, “dispondo aquelas fotografias ou outras de sua coleção com a parte de trás voltada para cima, como se fosse uma partida de paciência, e que então, sempre admirado com o que via, ele as virava uma a uma, empurrava-as de lá para cá e uma sobre as outras, arrumava-as em uma ordem que resultava de um certo ar de família, ou ainda as retirava do jogo até que nada mais restasse senão o tampo cinza da mesa, ou até que ele, exausto de tanto pensar e recordar, era obrigado a deitar-se na otomana”. (p.120-121)
O livro, aliás, é ilustrado com uma série de fotos que parecem ter saído da coleção particular de Sebald.
M.S.V.
quinta-feira, 8 de janeiro de 2009
Le Clézio e a batalha da literatura
É lugar comum da crítica pensar que quando um escritor escreve sobre literatura contribui para iluminar sua própria obra. Melhor será pensar que quando um ficcionista ou poeta escreve em prosa ensaística acrescenta à sua própria imagem de escritor a de intelectual que contribui para o debate público.
É esse o caso de Jean-Marie Le Clézio, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2008. Seu discurso na Academia sueca é uma importante reflexão sobre a situação da literatura e da cultura na autalidade.
Por que escrevemos?, pergunta Le Clézio na abertura de seu discurso. Cada um tem seus motivos, suas predisposições, seu contexto de produção. Para este escritor que alimenta sua ficção das vivências no continente africano, escrever é testemunhar aquilo que viveu. Mas escrever é o oposto de atuar, de agir no mundo. “Como pode o escritor atuar, se tudo o que ele sabe fazer é recordar?”, pergunta.
Para Le Clézio, o escritor deseja mais do que tudo atuar, ao invés de simplesmente dar seu testemunho por meio da linguagem. “Escrever, imaginar e sonhar de tal maneira que suas palavras, invenções e sonhos tenham impacto sobre a realidade, mudem as idéias das pessoas, preparem-nas para um mundo melhor”. Esta é a resposta de Le Clézio para o seu ofício.
Eis um escritor que acredita no poder transformador da literatura. Por isso defende em seu texto que a cultura pertence a toda a humanidade. Além disso, clama por mais alfabetização e maior disseminação do livro entre as populações carentes e isoladas do planeta. Para ele, é fundamental estabelecer fundos para bibliotecas e livrarias ambulantes e, sobretudo, publicar obras escritas nas chamadas línguas minoritárias.
Tudo isso ajudaria a literatura em sua batalha sem fim para proporcionar ao ser humano o “auto-conhecimento, o descobrimento dos outros e para escutar o concerto da humanidade, em toda sua rica gama de temas e modulações”.
M.S.V.
É esse o caso de Jean-Marie Le Clézio, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2008. Seu discurso na Academia sueca é uma importante reflexão sobre a situação da literatura e da cultura na autalidade.
Por que escrevemos?, pergunta Le Clézio na abertura de seu discurso. Cada um tem seus motivos, suas predisposições, seu contexto de produção. Para este escritor que alimenta sua ficção das vivências no continente africano, escrever é testemunhar aquilo que viveu. Mas escrever é o oposto de atuar, de agir no mundo. “Como pode o escritor atuar, se tudo o que ele sabe fazer é recordar?”, pergunta.
Para Le Clézio, o escritor deseja mais do que tudo atuar, ao invés de simplesmente dar seu testemunho por meio da linguagem. “Escrever, imaginar e sonhar de tal maneira que suas palavras, invenções e sonhos tenham impacto sobre a realidade, mudem as idéias das pessoas, preparem-nas para um mundo melhor”. Esta é a resposta de Le Clézio para o seu ofício.
Eis um escritor que acredita no poder transformador da literatura. Por isso defende em seu texto que a cultura pertence a toda a humanidade. Além disso, clama por mais alfabetização e maior disseminação do livro entre as populações carentes e isoladas do planeta. Para ele, é fundamental estabelecer fundos para bibliotecas e livrarias ambulantes e, sobretudo, publicar obras escritas nas chamadas línguas minoritárias.
Tudo isso ajudaria a literatura em sua batalha sem fim para proporcionar ao ser humano o “auto-conhecimento, o descobrimento dos outros e para escutar o concerto da humanidade, em toda sua rica gama de temas e modulações”.
M.S.V.
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