sábado, 31 de janeiro de 2009

John Updike, o retratista da vida americana


Houve um tempo em que os livros de John Updike (1932-2009) não saíam de minha mesa. Do escritor americano, morto dia 27 de janeiro, aos 76 anos, guardo com admiração as belas passagens de suas memórias, intituladas de Consciência à flor da pele, da crítica literária reunida em Bem perto da costa ou dos contos de Uma outra vida.

A reputação de Updike veio com a extensa série Coelho (Coelho cai, Coelho corre, Coelho cresce, Coelho em crise, Coelho se cala), protagonizada por um ex-campeão de basquete chamado Harry Rabbit Angstrom. Escrita ao longo de mais de três décadas, entre os anos 1960-1990, a série sintetiza a concepção de mundo do americano médio. Rabbit é um sujeito alienado politicamente, consumidor de TV e de alimentos congelados e morador de Cidadezinhas (título, aliás, de seu mais recente livro lançado no Brasil), ricas e provincianas, moralistas e religiosas.

Esteve no Brasil em 1992 e dois anos depois publicou Brazil, romance ambientado no país, em que faz uma releitura bastante livre da lenda de Tristão e Isolda. Updike tem uma escrita límpida e uma sintaxe muito bem amarrada. Soube como poucos retratar o trivial e o prosaico com beleza estilística, sem rebuscamentos ou digressões.

Agora que estou prestes a fixar residência em Bauru, no meio-oeste do estado de São Paulo, talvez seja uma boa oportunidade -- e também uma homenagem a um escritor que já li muito -- voltar à obra de Updike. Acho que vou marcar este retorno com o recém lançado Cidadezinhas.
M.S.V.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Austerlitz: notas de leitura

Austerlitz, de W.G. Sebald, é construído a partir de um duplo movimento: temos um narrador que conta seus encontros com Austerlitz e, a este relato, feito de lembranças, justapõe-se as recordações do próprio Austerlitz, professor aposentado, especialista em arquitetura do capitalismo, que, por sua vez, conta para o primeiro narrador histórias de suas viagens, descobertas, observações relativas aos mais variados assuntos, como um ornitólogo, um aviador, sua infância etc.

A narrativa flui, assim, em camadas de recordações, que tanto podem ser reflexões sobre sua própria trajetória, seus projetos passados e seus sentimentos presentes, como o momento em que reflete sobre o ato de ler:

“Como eu gostava, disse Austerlitz, de me sentar na companhia de um livro até noite fechada, até que não conseguisse mais decifrar uma palavra e os meus pensamentos começassem a girar em círculos, e como eu me sentia seguro sentado à escrivaninha de casa na noite escura, apenas observando a ponta do lápis à luz da lâmpada seguir como se por desígnio próprio e com absoluta fidelidade a sua própria sombra, que deslizava regularmente da esquerda para a direita e linha após linha sobre o papel pautado”. (p.123)

Uma das paixões de Austerlitz é a fotografia. Gostava de distribuir suas pequenas e gastas fotos sobre uma mesa grande laqueada de cinza-fosco, na ante-sala de sua casa em Londres. Ali sentava e ficava acionando a memória, “dispondo aquelas fotografias ou outras de sua coleção com a parte de trás voltada para cima, como se fosse uma partida de paciência, e que então, sempre admirado com o que via, ele as virava uma a uma, empurrava-as de lá para cá e uma sobre as outras, arrumava-as em uma ordem que resultava de um certo ar de família, ou ainda as retirava do jogo até que nada mais restasse senão o tampo cinza da mesa, ou até que ele, exausto de tanto pensar e recordar, era obrigado a deitar-se na otomana”. (p.120-121)

O livro, aliás, é ilustrado com uma série de fotos que parecem ter saído da coleção particular de Sebald.

M.S.V.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Le Clézio e a batalha da literatura

É lugar comum da crítica pensar que quando um escritor escreve sobre literatura contribui para iluminar sua própria obra. Melhor será pensar que quando um ficcionista ou poeta escreve em prosa ensaística acrescenta à sua própria imagem de escritor a de intelectual que contribui para o debate público.

É esse o caso de Jean-Marie Le Clézio, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2008. Seu discurso na Academia sueca é uma importante reflexão sobre a situação da literatura e da cultura na autalidade.

Por que escrevemos?, pergunta Le Clézio na abertura de seu discurso. Cada um tem seus motivos, suas predisposições, seu contexto de produção. Para este escritor que alimenta sua ficção das vivências no continente africano, escrever é testemunhar aquilo que viveu. Mas escrever é o oposto de atuar, de agir no mundo. “Como pode o escritor atuar, se tudo o que ele sabe fazer é recordar?”, pergunta.

Para Le Clézio, o escritor deseja mais do que tudo atuar, ao invés de simplesmente dar seu testemunho por meio da linguagem. “Escrever, imaginar e sonhar de tal maneira que suas palavras, invenções e sonhos tenham impacto sobre a realidade, mudem as idéias das pessoas, preparem-nas para um mundo melhor”. Esta é a resposta de Le Clézio para o seu ofício.

Eis um escritor que acredita no poder transformador da literatura. Por isso defende em seu texto que a cultura pertence a toda a humanidade. Além disso, clama por mais alfabetização e maior disseminação do livro entre as populações carentes e isoladas do planeta. Para ele, é fundamental estabelecer fundos para bibliotecas e livrarias ambulantes e, sobretudo, publicar obras escritas nas chamadas línguas minoritárias.

Tudo isso ajudaria a literatura em sua batalha sem fim para proporcionar ao ser humano o “auto-conhecimento, o descobrimento dos outros e para escutar o concerto da humanidade, em toda sua rica gama de temas e modulações”.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...