“Um professor de matemática – é Lichtenberg que conta a história – explicou certa vez aos estudantes um teorema, acrescentando: ‘Existe uma excelente demonstração desse teorema, mas não tenho muito tempo e não me sinto hoje bem disposto. Vocês me conhecem. Sabem que sou fidedigno. Juro que o teorema é verdadeiro. E basta’.
Gostaria de empregar esse mesmo ‘método’ de demonstração, jurando que O trapicheiro, o primeiro volume do roman-fleuve de Marques Rebelo, é muito bom; que é uma obra de valor extraordinário: e basta. Tempo, para demonstrá-lo, me sobra e disposição não me falta. Mas há vários outros motivos para justificar minha atitude axiomática. Antes de tudo: em que pesem os métodos científicos de crítica (dos quais aprovo muitos), não acredito que o valor de uma obra de arte possa jamais ser matematicamente demonstrado. A ciência não admite julgamentos de valor (v. Max Weber e Scheler); o desconhecimento dessa verdade leva os adeptos da crítica científica a prometer coisas que, depois, não sabem cumprir, fazendo crítica exatamente assim como os ‘impressionistas’ menos científicos. A mentalidade científica prefere basear suas explicações na descrição dos fatos; e basta”.
O trecho acima é uma verdadeira iluminação sobre o tipo de relação que um crítico literário deve estabelecer com as obras que comenta. É também representativo da concepção de crítica de Otto Maria Carpeaux. Foi extraído de “Suma de época”, artigo incluído na coletânea Livros na mesa, de 1960.
M.S.V.
quarta-feira, 6 de maio de 2009
sábado, 2 de maio de 2009
Dois poemas de Quintana
No próximo dia 5 de maio completam-se 15 anos desde a morte do poeta Mario Quintana (1906-1994). Por acreditar que a releitura de um livro é a maior homenagem que se pode prestar a um autor, releio Esconderijos do tempo.
Publicado em 1986, quando o autor já tinha uma trajetória consolidada no contexto da poesia brasileira, o volume traz 49 poemas bastante reveladores tanto do estilo quanto das temáticas que marcaram a obra poética de Quintana.
Como nos dois poemas transcritos a seguir, extraídos da belíssima Coleção Mario Quintana, organizada pela crítica literária Tânia Franco Carvalhal para a Editora Globo.
Ah, mundo...
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
-- rotos e felizes! –
por essas estradas do mundo.
Preparativos para a viagem
Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
Se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
-- a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face do Senhor...
os próprios Anjos te invejarão.
Aqui estão a ironia e o humor corrosivo diante da morte e o gosto pelas situações do cotidiano, sempre marcadas por um tratamento que busca fundir o real com o surreal. A poesia de Quintana está repleta de passadismo e de nostalgia.
Seu livro de estréia, A rua dos cataventos, foi mal recebido pela crítica, pois era feito de sonetos, numa época em que o Modernismo era hegemônico e o verso livre vigorava como o novo padrão de composição poética.
Mas não se pode ler a poesia de Quintana a partir dos pressupostos modernistas. Outros critérios poéticos precisam ser instaurados. Por isso a obra do poeta gaúcho necessita de uma releitura.
M.S.V.
Publicado em 1986, quando o autor já tinha uma trajetória consolidada no contexto da poesia brasileira, o volume traz 49 poemas bastante reveladores tanto do estilo quanto das temáticas que marcaram a obra poética de Quintana.
Como nos dois poemas transcritos a seguir, extraídos da belíssima Coleção Mario Quintana, organizada pela crítica literária Tânia Franco Carvalhal para a Editora Globo.
Ah, mundo...
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
-- rotos e felizes! –
por essas estradas do mundo.
Preparativos para a viagem
Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
Se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
-- a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face do Senhor...
os próprios Anjos te invejarão.
Aqui estão a ironia e o humor corrosivo diante da morte e o gosto pelas situações do cotidiano, sempre marcadas por um tratamento que busca fundir o real com o surreal. A poesia de Quintana está repleta de passadismo e de nostalgia.
Seu livro de estréia, A rua dos cataventos, foi mal recebido pela crítica, pois era feito de sonetos, numa época em que o Modernismo era hegemônico e o verso livre vigorava como o novo padrão de composição poética.
Mas não se pode ler a poesia de Quintana a partir dos pressupostos modernistas. Outros critérios poéticos precisam ser instaurados. Por isso a obra do poeta gaúcho necessita de uma releitura.
M.S.V.
sexta-feira, 1 de maio de 2009
Sobre um conto de Roberto Bolaño
B. é um escritor desconhecido que anda sem rumo entre cidades da França e Bélgica. Vive mudando de hotel, lê romances que depois joga no lixo, toma notas mas não escreve nada. Gosta de gêneros menores e de escritores desconhecidos.
B. é o narrador de “Vagabundo na França e na Bélgica”, conto de Putas Assassinas (Companhia das Letras, 2008), do chileno Roberto Bolaño. Os personagens deste conto não têm nome, apenas iniciais, numa indicação de que os seres que habitam a narrativa já não têm mais identidade.
Existência marcada pela extraterritorialidade, B é espanhol de origem, lê romances policiais em francês, idioma que mal conhece, assiste filmes falados em inglês e percorre os sebos em busca de autores esquecidos. A seguir, um pequeno trecho significativo do conto:
“Na manhã seguinte pega um trem com destino a Paris. Hospeda-se no hotel da rue Saint-Jacques, em outro quarto, e dedica os primeiros dias a procurar nos sebos um livro qualquer de André du Bouchet. Não acha nada. Du Bouchet, como Henry, o de Masnuy, foi apagado do mapa. No quarto dia não sai mais à rua. Manda subir comida ao seu quarto, mas quase não come. Termina de ler o último romance que comprou e joga-o no cesto do lixo.” (pág. 91).
À primeira vista, parece estarmos diante de uma literatura que se alimenta da própria literatura, como em Borges. Mas não é isso. Nenhum personagem do escritor argentino joga um romance no lixo. Há um desprezo e uma descrença pela escrita literária que lembram os comentários de Monsieur Teste, de Valéry, que queimava seus cadernos de anotações.
M.S.V.
B. é o narrador de “Vagabundo na França e na Bélgica”, conto de Putas Assassinas (Companhia das Letras, 2008), do chileno Roberto Bolaño. Os personagens deste conto não têm nome, apenas iniciais, numa indicação de que os seres que habitam a narrativa já não têm mais identidade.
Existência marcada pela extraterritorialidade, B é espanhol de origem, lê romances policiais em francês, idioma que mal conhece, assiste filmes falados em inglês e percorre os sebos em busca de autores esquecidos. A seguir, um pequeno trecho significativo do conto:
“Na manhã seguinte pega um trem com destino a Paris. Hospeda-se no hotel da rue Saint-Jacques, em outro quarto, e dedica os primeiros dias a procurar nos sebos um livro qualquer de André du Bouchet. Não acha nada. Du Bouchet, como Henry, o de Masnuy, foi apagado do mapa. No quarto dia não sai mais à rua. Manda subir comida ao seu quarto, mas quase não come. Termina de ler o último romance que comprou e joga-o no cesto do lixo.” (pág. 91).
À primeira vista, parece estarmos diante de uma literatura que se alimenta da própria literatura, como em Borges. Mas não é isso. Nenhum personagem do escritor argentino joga um romance no lixo. Há um desprezo e uma descrença pela escrita literária que lembram os comentários de Monsieur Teste, de Valéry, que queimava seus cadernos de anotações.
M.S.V.
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