domingo, 25 de outubro de 2009

A cultura do romance


Nenhum outro gênero renega tanto sua própria natureza quanto o romance. Desacreditado, quase sempre em crise, ele atravessou os séculos e sobreviveu a ataques de todos os tipos, do Estado, da Religião e até da própria crítica, que por mais de uma vez lhe decretou a morte ou o acusou de falsificar a realidade.

O fato é que, desde meados do século XIX, quando o gênero se fixou entre os leitores das metrópoles européias, com os ingleses Defoe e Fielding, o romance construiu mais do que uma história: há mesmo uma cultura do romance manifesta em certas constantes, como o individualismo, o mito do herói, a formação da personalidade (bildungsroman), a interioridade, o sujeito, o narrador, a viagem.

Esses aspectos e muitos outros estão contemplados na gigantesca e fascinante coleção O Romance, coordenada pelo crítico italiano Franco Moretti, cujo primeiro volume (A cultura do Romance) foi lançado recentemente no país (Cosac Naify, 1.120 págs., trad. de Denise Bottman, R$ 130). Organizada em cinco volumes, a coleção conta com 178 colaboradores de diversas nacionalidades. Do Brasil estão Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima.

A idéia do organizador é dissecar o gênero romance a partir de uma visão multidisciplinar. Para isso, foram convidados a colaborar não só especialistas em literatura, mas de áreas como antropologia, sociologia, filosofia, história e até geografia.

O projeto de Moretti aspira a ser muito mais do que uma história da literatura (afinal, quantas já temos?). Seu desejo é, sobretudo, ser uma reação ao close reading (a leitura fechada da obra) e ao processo de hierarquização de obras e valores feito pela ideia de cânone (leia-se Harold Bloom). Nada mais necessário para os dias de hoje.
M.S.V.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Crítica literária e jornalística

Em entrevista recente, fui perguntado sobre as diferenças entre a crítica jornalística e a crítica literária. O assunto é importante, pois mexe com fatores cruciais para se entender os rumos atuais da cultura letrada. Respondi que toda crítica literária é, em maior ou menor grau, jornalística, pois tem por função servir de intermediação entre o autor e o público.

O Brasil possui uma vasta tradição de crítica literária publicada em jornais, e mais do que isso: produzida para o jornal. Depois, é claro, essa crítica vira livro, mas aí já é outra coisa.

E por que existe essa proximidade? Porque o crítico precisa comunicar algo para o público. Há uma dimensão publicista da crítica literária que não pode ser esquecida. Ora, o que acontece quando o crítico literário deixa de escrever para o público? Não precisa publicar mais em jornal, e sim em revistas acadêmicas. Por isso sustento essa proximidade entre a crítica jornalística e a literária. São parte da mesma matriz discursiva.
É claro que essa crítica jornalístico-literária quase não existe mais hoje, pois a imprensa só abre espaço para resenhas. E a resenha é um gênero distinto, mais factual, sem profundidade, sem análise, somente um comentário breve.

Enfim, o que temos hoje é, de um lado, o resenhismo rápido e superficial; de outro, a crítica acadêmica que fica restrita à universidade, aos congressos etc. Uma crítica mais ‘técnica’, sem preocupação com a linguagem, sem estilo. Uma crítica esotérica, fechada, para poucos, para os professores.

E o público que ainda gosta de literatura? Este está órfão, pois não pode contar mais com o crítico de sólida formação e que ainda escreve com clareza e inteligência. É evidente que o jornalista profissional não consegue cumprir esta função, pois não tem nem formação, nem tempo.

Portanto, a única possibilidade que vejo para o crítico literário hoje é a universidade, já que no jornalismo não sobra tempo para a formação, para a leitura. Escrever crítica demanda tempo e dedicação. Por outro lado, os especialistas em teoria literária só escrevem para os especialistas.

Acredito que o crítico é um intelectual que possui uma função pública a desempenhar, a de intermediário entre o autor e o público.

Nesse sentido, o crítico deve ser um hospedeiro do artista, mas um hospedeiro que possui autonomia diante das pressões do mercado e visão crítica. Enfim, um sujeito independente, e isso custa muito caro.
M.S.V.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Pequena crônica de um grande gênero

Entre todos os gêneros de escrita, a crônica talvez seja o mais livre e, ao mesmo tempo, mais difícil de ser definido. E isto se deve, creio, à amplitude estilística e temática que a caracterizam. Na imprensa brasileira, por exemplo, tudo aquilo que é publicado sob a rubrica de crônica acaba se incorporando a esse caldeirão de estilos em que cabe tudo, ou quase.

O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, por exemplo, classifica de crônica todos os seus escritos jornalísticos. Onde quer que escreva e sobre o assunto que for, será sempre crônica, costuma repetir em suas entrevistas.

No Brasil, a crônica é praticada desde o início de nossa literatura. Há quem diga que se trata de um gênero tipicamente brasileiro, assim como o ensaio é identificado como um gênero tipicamente inglês. É evidente que não somos os únicos a escrever crônica e nem o ensaio é exclusividade dos praticantes do idioma de Shakespeare. São apenas associações entre estilo e cultura.

Iniciei com uma referência à amplitude estilística e temática da crônica. Vejamos como isso funciona. Machado de Assis, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga: todos pertencem ao primeiro time da literatura brasileira e todos escreveram crônica durante a vida, muitas vezes até para ganhar o sustento. E ao fazê-lo, cada um deles imprimiu seu próprio estilo ao gênero.

Tanto é que quando falamos do Machado cronista, logo pensamos na política brasileira na época do Segundo Reinado. Mário de Andrade e Manuel Bandeira escreveram crônicas mais ligadas a aspectos históricos e culturais, enquanto Drummond imprimia poesia em seus textos para jornal.

Dos citados, Rubem Braga tem uma particularidade: sua obra maior é a crônica e a ela dedicou todo o seu talento criativo. Como conseqüência, podemos considerá-lo, sem medo de errar, o maior cronista da literatura brasileira. São antológicas as páginas de “O conde e o passarinho”, “A borboleta amarela” ou “Ai de ti, Copacabana”, só pra ficar em três exemplos magistrais.

Pano rápido para a atualidade: Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Zuenir Ventura, Contardo Calligaris e o já citado Carlos Heitor Cony. De novo temos cinco estilos e temáticas diferenciadas. Humor, comportamento, política, cotidiano, conflitos existenciais. Não há limites para a crônica, ainda que seu ponto de partida seja quase sempre o episódico, a atualidade, a vida ao rés-do-chão.

Mas o desafio maior de todo cronista está em ultrapassar esse elemento episódico que a inspirou e falar de perto ao leitor, sempre naquele tom de despretensão e oralidade que torna a crônica um gênero tão peculiar. Como lembra o crítico Antonio Candido, nenhuma literatura se sustenta apenas com cronistas. Mas, penso eu, nenhuma literatura e nenhum jornalismo podem prescindir do olhar irônico, poético e sorrateiro do cronista, que sabe como poucos fisgar o leitor.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...