domingo, 26 de setembro de 2010

“Liberte os urubu”


A frase acima é a pichação na instalação de Nuno Ramos feita ontem na abertura da 29ª. Bienal de Arte de São Paulo. De acordo com reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo, um rapaz invadiu a obra Bandeira Branca, que mantinha três urubus vivos como parte da instalação, e pichou a frase “liberte os urubu (sic)”. Após o ocorrido, houve confronto entre seguranças e manifestantes, que incluíam, além dos pichadores, representantes de entidades de defesa dos animais.

Não quero entrar no mérito do uso de animais na instalação. Aliás, pelos que li nas reportagens, Nuno Ramos tinha autorização para fazer uso dos urubus, nem há notícia de maus tratos. A importância do fato está na reação do artista, que mandou limpar imediatamente a obra, apagando assim aquilo que considero uma oportuna intervenção dos pichadores na obra. Vejam só o que ele disse após ocorido:

“Nesse lugar que é a Bienal, o outro aparece numa condição de agressão. Não estou chocado, não estou com raiva, vejo como algo atrasado”. Nuno Ramos mostrou-se incapaz de compreender a atitude transgressora. Talvez tenha esquecido que ele próprio já foi um transgressor na arte, com suas esculturas gigantes e instalações feitas com os mais inusitados materiais, inclusive lixo. Uma das mais chocantes de suas instalações foi aquela em que lembrava a chacina do Carandiru. E assim ele foi construindo sua reputação.

Mas isso era num tempo em que o artista ainda era um aspirante à consagração no campo das artes. Um pretendente, diria Bourdieu. Como agora ele já pertence ao establishment da arte, ou seja, já se tornou um artista legitimado, age como um conservador da posição que ocupa. Tudo muito previsível.

A foto acima (Filipe Araujo/AE), a Bandeira Branca pichada, que está nos jornais de hoje, entrará para a história da arte e da Bienal como um capítulo fugaz, mas que reflete a luta entre artistas legitimados e não legitimados (os pichadores). Principalmente por que ela não existe mais, já que foi apagada ontem mesmo.

Se não tivesse ficado mesmo chocado, como afirmou à imprensa, Nuno Ramos não teria mandado retirar a pichação, mas a teria incorporado à sua instalação. Uma intervenção (i)legítima numa obra legitimada! O episódio mostra que os pichadores parecem estar à frente dos artistas consagrados. Estes, aliás, permanecem comodamente instalados no lugar que conquistaram. A vanguarda virou museu.
M.S.V.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A liberdade à sombra das cerejeiras

A liberdade de expressão não é um valor exclusivo do Ocidente e os direitos do indivíduo podem ser um atributo de todas as sociedades. Esta máxima, contra a qual o relativismo cultural se insurge, parece cada vez mais válida no Irã. Fiquei pensando nisso ao ler a reportagem do jornalista Jon Lee Anderson na edição de setembro da Piauí.

Anderson viajou a Teerã para entrevistar o presidente Mahmoud Ahmadinejad. Enquanto aguardava a entrevista, aproveitou para passear pelos bairros ao norte da capital do país. Foi à sombra de um pomar de cerejeiras, nas montanhas Alborz, que o autor de A queda de Bagdá e Che Guevara, uma biografia (ambos pela Editora Objetiva) se deparou com três membros do Movimento Verde. Defensor de reformas políticas e de comportamento no Irã, o movimento protagonizou as manifestações e protestos do ano passado, logo após as eleições (suspeitas de fraude) que reconduziram ao poder o atual presidente.

Da reportagem de Anderson, publicada originalmente na revista The New Yorker, destaco o seguinte trecho, bastante ilustrativo dos anseios da sociedade civil iraniana.

“No pomar de cerejeiras, os homens do Movimento Verde com quem eu conversava ganharam a companhia das esposas. Uma delas discorreu sobre Spinoza, um dos precursores do Iluminismo na Europa e da separação do que ela chamou de mesquita e Estado: Precisamos de um Spinoza no Irã.”

Não são apenas as cerejeiras que florescem no Irã: a opinião da sociedade civil e dos indivíduos também germina, apesar da intensa repressão, dos assassinatos e dos julgamentos sumários, que se seguiram aos protestos nas ruas de Teerã. A reportagem de Anderson deixa evidente que a estrutura de poder montada pelos aiatolás e pela fusão da Religiâo com o Estado apresenta rachaduras, e é por meio dessas pequenas frestas que a expressão individual dos iranianos se mantém viva. E mais cedo ou mais tarde esse edifício cairá.
M.S.V.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Lima Barreto e a república das letras

Ele recusava a estilização e o uso puramente ornamental da erudição feito pelos seus contemporâneos, os bacharéis das letras. Ao mesmo tempo, compreendeu como poucos a dinâmica da corrupção e do aliciamento político de nossa nascente república. Refiro-me a Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), romancista, cronista, contista e jornalista.

Nascido no Rio de Janeiro, negro e de origem humilde, Lima Barreto passou sua curta e sofrida existência vivenciando um boicote sistemático a suas obras. Teve apenas cinco de seus livros publicados em vida, custeados por ele próprio, e nenhum deles obteve o reconhecimento devido.

Ao contrário, sempre foi rotulado como um inadaptado, um perdido, um escritor de segunda categoria que teve a infelicidade de nascer num período de transição, que começa com a morte de Machado de Assis e termina com a Semana de Arte Moderna, em 1922.

Sua honestidade intelectual e seu espírito livre lhe curstaram muito caro: jamais obteve a legitimação da crítica oficial. Monteiro Lobato foi um dos poucos que levaram a sério a obra de Lima Barreto, mas quando isso ocorreu já era tarde demais: o escritor já havia naufragado no alcoolismo.

Em artigo publicado no último dia 5 de setembro na Folha de São Paulo, o historiador e professor dac USP Nicolau Sevcenko escreve: “Ele é provavelmente o único intelectual que manifestou uma compreensão sistemática da mecânica política corrompida e corruptora do regime republicano desde suas origens.”

Lima Barreto terá em breve a totalidade de seus contos publicados num único volume, o que permitirá não só uma visão de conjunto sobre textos até então dispersos, mas uma reavaliação do lugar ocupado pelo escritor no contexto maior da literatura brasileira e das relações de poder que permeiam a produção cultural no país.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...