domingo, 24 de outubro de 2010

José Castello, ou a crítica enquanto crônica

 
Sempre fui um leitor voraz de crítica e tenho uma predileção especial por estudar os modos e as manhas deste gênero tão necessário quanto suspeito. 

Minhas leituras sempre incluíram os críticos ao lado dos ficcionistas, e creio mesmo que a literatura e a arte não podem dispensar esse antigo trabalho da interpretação.

Dia desses, ao escrever sobre as razões da crítica, procurei explicar os motivos que levam tantos autores – e mesmo o público leitor – a encarar com suspeita a explicação do texto literário e a análise científica de obras artísticas.

Outro fator de resistência à crítica pode estar na idéia de transcendência da obra, de algo que não pode ser compreendido ou decifrado pelo conhecimento racional. Isso sem falar na linguagem da crítica, que se tornou especializadíssima em função de sua institucionalização e acadêmica por contingências financeiras. Afinal, do que mais poderá se manter um crítico hoje que não vive de jornalismo, senão do emprego de professor?

O fato é que a crítica de linhagem acadêmica acabou se transformando num modelo hegemônico, deixando em segundo plano a figura do velho crítico literário, aquele que nasceu nos rodapés dos jornais e que, além de erudito, escrevia para um púlbico amplo.

A consequência mais visível dessa virada nos rumos da crítica está na linguagem, que se tornou hermética e permeada de jargões, já que os críticos escrevem para seus pares. Sempre penso nessas questões quando estou diante de um texto crítico. Mais do que o método, preocupa-me o estilo e a voz autoral presente nas manifestações de gosto que devem estar na base de toda análise e julgamento de uma obra.

Pois um dos críticos em atividade que mais admiro é José Castello, que assina uma coluna semanal no Suplemento Prosa & Verso, no jornal O Globo. Pois não é que sempre que leio suas críticas tenho a impressão de estar lendo uma crônica? Em José Castello não temos o tom professoral, de certezas e demonstrações teóricas, mas um clima de conversa com o leitor, num texto que mistura digressões e lembranças. Tais elementos parecem fazer o texto descambar para uma conversa fiada, mas, quando menos esperamos, nos conduzem a uma chave de leitura da obra em questão. Nesse ponto, já estamos definitivamente convencidos de seus argumentos.

Os traços de crônica são mais visíveis quando Castello escreve em primeira pessoa, como na crítica de 16 de outubro último: “Sou um leitor sentimental. Quando leio, guio-me por sentimentos vagos, que me ficaram de leituras antigas e de impressões resistentes, e que, de alguma maneira, formam o leitor que sou.” Em outra crítica, ele inicia lembrando de seu falecido tio...

Sempre que travou contato com determinado autor cuja obra agora comenta ou já o entrevistou em determinada época, Castello faz questão de informar o leitor sobre as circunstâncias do fato, o que dá ainda mais transparência e credibilidade ao seu oficio.

Mais do que certezas argumentativas e precisões metodológicas, a crítica de José Castello é feita de sentimento, de impressões e de leitura. Um crítico impressionista, como diria Afrânio Coutinho em outros tempos. Pois a literatura precisa é de críticos assim: crítica também se faz com sentimento.
M.S.V.

domingo, 17 de outubro de 2010

Bolaño e a revolução da literatura

Os poucos leitores deste blog vão se perguntar sobre os motivos deste novo post sobre Roberto Bolaño. Nos últimos vinte anos, poucos escritores me incomodaram tanto quanto o autor de Os detetives selvagens. Não se pode falar de narrativas ficcionais contemporâneas sem fazer referência ao escritor chileno.

Em Estrela distante (Companhia das Letras, 2009, trad. de Bernardo Azjenberg), há um personagem que aparece quase no final do livro e que é uma espécie de porta-voz da enigmática “seita dos escritores bárbaros”. Chama-se Raoul Delorme, um ex-soldado que, em 1968, trabalhava como zelador num prédio do centro de Paris.

Enquanto a capital francesa era tomada pelas barricadas do desejo e da revolução por estudantes que mais tarde se tornarão os futuros intelectuais e romancistas do país, Delorme tranca-se em seu cubículo de zelador e começa a dar forma à sua nova literatura. Essa literatura está amparada, segundo ele, em dois procedimentos simples: confinamento e leitura.

A seita dos escritores bárbaros defende uma “assimilação real” dos clássicos. Trata-se de “uma aproximação corporal que rompia com todas as barreiras impostas pela cultura, a academia e a técnica”, escreve Delorme. Uma aproximação corporal que pede aos seus seguidores que façam todas as suas necessidades fisiológicas sobre as páginas dos clássicos da literatura. Eis o trecho (pág. 126), que sintetiza o manifesto dos escritores bárbaros:

“Era preciso se fundir com as obras-primas. Isso se obtinha de uma forma bastante curiosa: defecando sobre as páginas de Stendhal, assoando o nariz com as páginas de Vitor Hugo, masturbando-se e espalhando o esperma sobre as páginas de Gautier ou Banville, vomitando nas páginas de Daudet, urinando sobre as páginas de Lamartine, cortando-se com lâminas de barbear e fazendo respingar o sangue nas páginas de Balzac ou Maupassant, submetendo os livros, enfim, a um processo de degradação que Delorme chamava de humanização”.

O que quer Bolaño com isso? Penso que o autor chileno lança um veemente grito de protesto contra o sistema literário, com seus mecanismos de consagração e seus prêmios, e contra todos os agentes que compõem esse círculo. Niilista, a obra de Bolaño investe contra a crença na literatura, na crítica e na própria tradição literária.

Na voz de seu personagem Delorme, Bolãno quer “uma literatura escrita por gente alheia à literatura”. Para ele, “a revolução ainda pendente da literatura significará, de alguma forma, sua propria abolição”. Seu desejo é uma poesia “feita por não poetas e lida por não leitores”.

Segue a trilha de M. Teste, o personagem criado por Paul Valèry, e busca dessacralizar a literatura. Que outra ideia pode haver na metáfora dos excrementos humanos sobre as páginas dos clássicos? Bolaño não vê qualquer nobreza no livro ou na literatura. “Não mergulharei nunca mais no mar de merda da literatura”, escreve.
Estamos diante de um anti-Borges por excelência. Não existe uma tradição para ser venerada, nem clássicos para serem cultuados ou reescritos. Pierre Menard, M. Teste: a que trilha pertence a literatura de Bolaño?
M.S.V.

domingo, 10 de outubro de 2010

Vargas Llosa: o indivíduo contra o poder


Mario Vargas Llosa é o prêmio Nobel de Literatura de 2010. O resultado, anunciado pela Academia Sueca na última quinta-feira, dia 7, não deixou de surpreender, já que o escritor peruano tem assumido, nas duas últimas décadas, posições públicas cada vez mais distanciadas daquilo que alguns setores ainda insistem em denominar de “posição de esquerda”, e que o Nobel de Literatura não raro costuma consagrar com suas premiações.

A esse sentimento veio somar-se um segundo, que me remeteu de imediato a uma época já longínqua, em que, ainda garoto, descobria a literatura latino-americana. Junto ao colombiano Gabriel García Márquez (também Nobel) e ao argentino Jorge Luis Borges (além-Nobel), o escritor peruano, autor de A Casa Verde, Tia Júlia e o escrevinhador e Conversa na Catedral, entre outros, foi um capítulo fundamental de minha formação como leitor.

Mas, a partir dos anos 90, deixei de ler a ficção de Vargas Llosa. Troquei-a pelos seus artigos na imprensa, e, sobretudo, pelos seus ensaios sobre literatura. Vargas Llosa é um brilhante ensaísta e é impressionante o modo como o escritor peruano defende a necessidade da literatura e da imaginação criadora nos dias de hoje, em que o documental pedomina sobre a ficção. Sua visão de literatura e suas concepções teóricas sobre o romance podem ser conferidas nas coletâneas A linguagem da paixão (Arx, 2002) e A verdade das mentiras (Arx, 2004).

É a escritores como Vargas Llosa que devo o gosto e o vício pela literatura, o encantamento com tramas e estruturas narrativas bem elaboradas e com personagens constituídos, de carne e osso. Sobretudo, o contato com os elementos do imaginário hispano-americano, que permeiam a obra desse escritor, e cujo registro verbal transita entre a história, a ficção e o jornalismo.

Há quem tenha considerado inadequado o Nobel para Vargas Llosa, já que se trata de um escritor “conservador”, um defensor do ideário liberal. Na verdade, o escritor peruano sempre foi um crítico contumaz do autoritarismo em todos os seus matizes e um defensor da liberdade individual. A Academia Sueca justificou a escolha do Nobel a Vargas Llosa por sua “cartografia das estruturas do poder e suas incisivas imagens da resistência individual, da revolta e da derrota”. São essas imagens, aliás, que saltam de sua obra em personagens como Belisario, Zavalita, a Chunga e Pantaleão Pantoja. Ou mesmo na releitura que fez do episódio de Canudos em A guerra do fim do mundo, embora eu considere este um capítulo menor de sua obra.

Em entrevista ao jornal El País, de Madri, o escritor definiu sua literatura como uma “resistência do indívíduo diante do poder, da luta dos homens para salvar sua individualidade num mundo em que a liberdade está acossada”. Mais do que um ficcionista, Vargas Llosa é um intelectual consciente de seu papel público, um escritor que é também testemunha de sua época.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...