sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Anotações de um copista


Então começou a criar personagens em sua mente, mas eram tão passageiros, tão embrionários que mais pareciam clarões. Eram criaturas em passagem, como que saídos de um romance de Robert Walser, o escritor andarilho que não tinha moradia fixa, não possuía livros e escrevia em papéis usados. “Há vinte anos que não tenho mais livros. Também queimei meus papéis. Rabisco o instante... Retenho o que quero”, escreve Monsieur Teste, o enigmático personagem de Paul Valéry.

Por falar em andarilhos, lembro que o poeta Mario Quintana morou a vida inteira em pequenos quartos de hotéis. Nunca teve casa própria ou alugada. Costumava vê-lo em suas caminhadas pela Rua da Praia, no centro de Porto Alegre. Seus poemas têm uma simplicidade que fazem com que o leitor os subestime. É um erro. Mas talvez seus versos sejam como clarões na noite escura. “Os poemas são pássaros que chegam, não se sabe de onde e pousam no livro que lês”, escreveu em Esconderijos do tempo, livro de 1980.

Então viu que seus personagens eram sombras que habitavam seus próprios sonhos, mesmo quando estava acordado. Instantâneos de um vazio singular.
M.S.V.

domingo, 26 de dezembro de 2010

A necessidade da ficção


Nos dias atuais, creio que mais importante do que saber o que é e o que não é literatura, no sentido de ficção, talvez seja perguntar sobre sua utilidade. Afinal, para que serve a ficção num mundo regido pelas notícias e pelo apego ao documental? Recorro ao discurso que o escritor peruano Mario Vargas Llosa fez quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2010, em 7 de dezembro último.
Para Vargas Llosa, ler é protestar contra as insuficiências da vida: “Quien busca en la ficción lo que no tiene, dice, sin necesidad de decirlo, ni siquiera saberlo, que la vida tal como es no nos basta para colmar nuestra sed de absoluto, fundamento de la condición humana, y que debería ser mejor. Inventamos las ficciones para poder vivir de alguna manera las muchas vidas que quisiéramos tener cuando apenas disponemos de una sola.”
  A literatura será capaz de nos tornar melhores? “Seríamos peores de lo que somos sin los buenos libros que leímos, más conformistas, menos inquietos e insumisos y el espíritu crítico, motor del progreso, ni siquiera existiría. Igual que escribir, leer es protestar contra las insuficiencias de la vida”, responde Vargas Llosa.
Eis aí a primeira e mais rudimentar função a ser desempenhada pela literatura e, em geral, pela arte: transformar o sonho em vida e a vida em sonho. Esta função escatológica, de fuga da realidade, está presente até na mais rudimentar das ficções, como é o caso das telenovelas. As tramas simples e as personagens planas, sem contradições, que entram nas nossas casas todas as noites arrebatam o público por que satisfazem, em alguma medida, essa necessidade de ficção que todo ser humano possui.
Acostumado a essas doses contínuas de ficção rudimentar trazidas pela telenovela, o grande público deixa de descobrir a beleza de transformar as palavras dos livros em imagens. Como escreve Vargas Llosa, o contato direto com as grandes obras da literatura torna menos previsível nossa vida cotidiana. A literatura mostra o quanto o mundo em que vivemos está mal feito e que “la vida de la fantasía es más rica que la de la rutina cotidiana”. Precisamos de ficção para não morrer de verdade.
M.S.V.

domingo, 19 de dezembro de 2010

A orelha anônima de Lezama Lima


Na década de 1990, quando escrevia orelhas anônimas para uma editora de São Paulo, caiu-me nas mãos as provas de A dignidade da poesia, de José Lezama Lima (1910-1976). Minha tarefa era, em pouquíssimos dias, ler o material e escrever um texto para a orelha do livro a ser lançado em breve. Na época, a obra do poeta e ensaísta cubano era-me inteiramente desconhecida e o contato com esta estranha coletânea de ensaios foi uma experiência de leitura fascinante.
Lembrei disso ontem pela manhã, durante o café, ao ler no Sabático artigo de Carlos Granés sobre o autor de Paradiso, cujo centenário de nascimento é hoje. Fui à estante à procura do meu exemplar e pude reler o breve texto anônimo que escrevi então: “o leitor brasileiro tem a oportunidade de descobrir por que é impossível permanecer indiferente à força inusitada de suas metáforas ou ao barroquismo crioulo do seu estilo”.
Não sei se escreveria isso hoje: afinal, texto de orelha é texto publicitário. Naquela época, escrevia muitos desses e de outros textos, sempre trabalho anônimo e muito mal remunerado. Mas a possibilidade de ganhar uns trocados por meio da leitura e da escrita me seduziu durante um bom tempo. Conheci as entranhas da indústria editorial e do negócio do livro. Mas também descobri e aprendi muito naquela época. Lia sempe tudo o que editava e isso tornava o trabalho penoso e com uma relação custo-benefício bastante desfavorável a mim.
Quando somos apenas leitores, costumamos esquecer essa fria verdade, de que a indústria de bens simbólicos tem uma lei subterrânea, que é a denegação de sua própria economia de produção. Gera lucro, mas esconde esse fato. A essa lei não escapam nem mesmo os sofisticados produtos da erudição, como a coletâna de Lezama Lima que tenho agora ao meu lado.
Lá estão artigos sobre Góngora, Quevedo, Calderón, Rimbaud, Mallarmé e Valéry, publicados em sua maioria em revistas cubanas nas décadas de 1940-50. O olhar de Lezama sobre a tradição do Ocidente está marcado pela necessidade de devoração, pelo sincretismo das citações e o emaranhado do seu estilo. Por isso o chamam de escritor neo-barroco. Mas isso talvez seja apenas uma etiqueta e não um conceito. Os produtos podem precisar de etiqueta; as obras, como a do poeta cubano, só precisam de leitores.
M.S.V.

domingo, 5 de dezembro de 2010

História e tragédia de Bruno Schulz



Numa tarde de abril de 1933, um homem de estatura pequena e andar curvado chega a um pequeno hotel de Varsóvia. Na recepção está Magdalena Gross, uma escultora de renome na cidade, que administra o hotel da família, local conhecido por ser ponto de encontro de intelectuais e escritores. O hóspede vem somente para o pernoite e seu objetivo é um só: entregar os originais de seu livro a Zofia Nalkowska, escritora influente nos meios literários da Polônia.
É através de Magdalena que o hóspede pretende chegar até Zofia. Impressionada com a obstinação do obscuro e modesto professor, ela aceita intermediar o contato. O candidato a escritor terá dez minutos para mostrar a que veio. Corre até a casa da escritora para um encontro rápido. Em pé, ele começa a ler a primeira página de seu livro. Logo ela o interrompe e pede para que o visitante a deixe sozinha com seu manuscrito. Lê apenas 30 páginas, mas é o suficiente para constatar que está diante de algo extraordinariamente novo na literatura de seu país.
O manuscrito que tanto impressionou Madame Zofia se chama Lojas de canela, e seu autor é Bruno Schulz, escritor judeu polonês que nasceu em 1892 em Drohobycz, na então Galícia, hoje Ucrânia. Publicado em 1934, o livro significou o reconhecimento imediato do talento de Schulz, tornando-o objeto de culto de escritores como Philip Roth, Danilo Kïs e David Grossman, que escreveu um belo ensaio sobre Schulz na revista Serrote (Número 5, julhode 2010).
A história de Schulz, que começou tão promissora, foi uma sucessão de tragédias. Publicou apenas mais um livro, O sanatório sob o signo da clepsidra, em 1937, e escreveu alguns ensaios e resenhas. Deixou pinturas e desenhos impressionantes (como os dois que estão reproduzidos aqui). Teria também escrito um romance, intitulado O messias, que se perdeu durante a segunda guerra. Com a ascensão do nazismo, acabou prisioneiro no gueto de Drohobycz, onde foi assassinado por soldados da SS.
Muitas histórias e lendas envolvem a figura e a trajetória de Bruno Schulz. Grossman conta que até mesmo sua morte está envolta em mistério. Mas é fato que ele morreu no gueto e que a maior parte de seus papéis se perdeu. Contemporâneo de Franz Kafka e Robert Walser, as duas coletâneas de contos deixadas por Schulz permitem antever uma literatura próxima do fantástico.
Como escreve Grossman no ensaio publicado por Serrote, seus contos “são escritos numa linguagem que transborda vida, uma linguagem que é ela mesma o principal personagem das histórias e a única dimensão na qual elas poderiam existir”.
Eis um escritor para ser descoberto.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...