domingo, 30 de janeiro de 2011

Calvino e as apropriações da leitura


Você abre o livro e começa a leitura de um romance. Depois de umas trinta e poucas páginas, a leitura pega ritmo e você é fisgado pela trama. Mas eis que, ao virar a página para iniciar novo capítulo, percebe que já leu aquelas frases. Mais: parágrafos inteiros se repetem. Só então descobre que o livro veio com defeito: foi encadernado com os mesmos cadernos, as mesmas 32 páginas do início ao fim. Retorna à livraria onde o comprou e expõe o defeito do livro. Só então é informado de que o romance cuja leitura iniciada não era Se um viajante numa noite de inverno, do italiano Italo Calvino (deste, só havia a folha de rosto), mas Distanciando-se de Malbork, do polonês Tadeo Bazakbal.

Agora você tem dois problemas: quer o livro de Calvino que julgou comprar e deseja também o de Bazakbal, pois foi fisgado pela história. Mais adiante vai descobrir que a editora misturou não só esses dois romances, mas outros, como Debruçado na borda da costa escarpada e Sem temer a vertigem e o vento, além de outros oito romances, a maioria de escritores desconhecidos e pertencentes a literaturas consideradas menores, como o cimério. E assim o leitor vê-se envolvido nesta trama de originais trocados, traduções invertidas, leituras atravessadas e manuscritos inacabados.

Em Se um viajante numa noite de inverno, Italo Calvino escreve um romance para falar de questões como originalidade, autoria, processo de produção do livro e as disputas que envolvem a própria tradição literária. A narrativa é construída em dois planos: o do leitor às voltas com um livro que mistura diferentes histórias e as histórias desses romances misteriosos, que vão se acumulando diante do leitor, que se vê fisgado por essas histórias inacabadas.
M.S.V.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O lirismo comedido na poesia de Telma Scherer

Telma Scherer: poesia e performance


Ela é autora de dois livros de poemas -- Desconjunto (IEL, 2002) e Rumor da Casa (7 Letras, 2008), e acredita que poesia e performance caminham juntas.

Ao colocar em prática esse preceito, Telma Scherer, jovem poetiza de Porto Alegre, acabou sendo impedida pela polícia de continuar a performance que fazia na tradicional Feira do Livro da capital gaúcha, em novembro do ano passado. Somente agora soube do ocorrido, ao ler entrevista da autora no blog mundo livro, no site de Zero Hora.
Na ocasião, Telma sentou no meio de uma calçada da Praça da Alfândega, no centro de Porto Alegre, e, entre as barracas de livros e os famosos jacarandás que costumam florescer naquela época do ano, amarrou-se a uma casinha de cachorro enquanto distribuía suas contas pessoais às pessoas que passavam pela Feira.

Intitulada “Não alimente o escritor”, a performance foi a maneira que Telma encontrou para protestar contra as dificuldades vividas por todos aqueles que se jogam na criação literária mas não se submetem às leis do mercado.  Não é um caminho fácil, principalmente para quem escreve poesia.

“Meu objetivo era o de proporcionar aos espectadores a visão de uma cena forte e inquietante, que convidasse-os à reflexão. A intenção da escolha dos elementos foi a de trazer à tona aspectos do processo criativo dos escritores que ficam geralmente à margem, desvanecidos e ocultados pela finalização desse processo e o conseqüente oferecimento (à compra e venda) de um produto, o livro. Quis mostrar o quanto existe de vida real, sofrimento e danação por trás da feitura dos “objetos transcendentes”, declarou Telma ao blog mundolivro.

Telma Scherer acredita que “a boa poesia pode ser escrita enquanto inscrita no corpo”. Uma voz poética a ser decoberta, e que pode começar com uma visita pelo seu blog. Ali pode-se ter um primeiro contato com os poemas de Telma, como o que reproduzo abaixo.

“Não sou católica.
Minha alma vem de outros ancestrais.
E são tais, os meus companheiros,
que não nos dizemos nada.
Nem ais, nem mágoas,
nem vaidades e nem anseios.
Entendemo-nos.
Bater portas, fazer gritos,
verter brita no fundo dos olhos,
isso não é comigo.
Não sou católica,
mas minha alma é cheia de Palavras.
São elas que brilham
depois da escavação.
Estar certo
não adianta nada.
Escavem o certo e o errado,
mesquinhos aos olhos de Deus.
Deus esquece das mágoas vãs.
Porque Deus é maior que o mundo,
e menor.
Ele sabe de toda a história.
Não precisa contar piadas.
Deus não precisa
levantar a voz.
(Telma Scherer, extraído de http://telmascherer.blogspot.com)

Este pequeno poema, composto de 25 versos de aparente simplicidade, esconde uma significação nada simples. Telma parece dialogar com a poesia de Mario Quintana, principalmente pelo lirismo contido que tende ao metafísico. Ao mesmo tempo, sua escrita desconfia da suposta complexidade da vida. Embora tenha “a alma cheia de palavras”, elas não precisam ser verbalizadas: Nem ais, nem mágoas, nem vaidades e nem anseios. Entendemo-nos. Bater portas, fazer gritos, verter brita no fundo dos olhos, isso não é comigo”.

Escrevo sobre Telma Scherer sem conhecer o conjunto de sua produção e sei que isso torna arriscada a leitura. Se a poesia é risco, nem por isso o risco da leitura é menor. Afinal, ler é ser lido por aquilo que se lê, e os versos de Telma Scherer acima citados são palavras que “brilham depois da escavação”.
M.S.V.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Dívidas de leitura para 2011


Nesta época pipocam na mídia as famosas listas dos melhores do ano que passou e as indicações de leitura para o ano que entra. Minha lista não é feita dos melhores disso ou daquilo, nem contempla autores novos ou consagrados. É uma lista de dívidas pessoais que tenho com certos livros que já deveria ler lido.
São obras que encontrei abandonadas na babel de minha biblioteca. Pretendo lê-las no decorrer do ano, além, é claro, dos livros de trabalho (sempre teóricos) e dos inúmeros artigos acadêmicos, contingência também da profissão. São as seguintes, em ordem alfabética. Publico-as, aqui, para dividir com o leitor minhas inquietações.

A escrita ou a vida, de Jorge Semprun
Jorge Semprun
O testemunho de um escritor espanhol que passou dois anos como prisioneiro do campo de concentração de Buchenwald, na Polônia. Semprun precisou de cinquenta anos para colocar no papel as atrocidades vividas pelos judeus nesta que foi a trágédia suprema do século 20. É possível representar o irrepresentável? Escrever ou morrer.
O chileno Roberto Bolaño




Amuleto, de Roberto Bolaño
Neste romance, o escritor chileno parte de um fato real – a invasão da Universidade Autônoma do México por tropas militares em 1968 – para contar a trajetória de Auxilio Lacouture, uma artista andarilha, hippie, tão criativa quanto alucinada. Uma metáfora da criação artística amordaçada pelo autoritarismo político.

A resistência, de Ernesto Sabato
Por meio de cartas, o argentino Sabato compõe um diagnóstico de nossa época. Um libelo contra a solidão nas grandes cidades, a desumanização, a violência e a transformação da arte em mercadoria. É o testamento intelectual de um grande escritor.

A trégua, de Mario Benedetti
O uruguaio Benedetti
O Uruguai dos anos 50 surge nas páginas desta novela, que conta a trajetória de um sujeito fracassado que vive esperando sua aposentadoria. O motivo de tanto desgosto foi a morte prematura da mulher amada, fato jamais superado pelo protagonista de A trégua.

Bartleby, o escriturário, de Herman Melville
Aqui o autor de Moby Dick conta a trajetória de um escriturário fracassado que se afunda cada vez mais na rotina de seu trabalho. A narrativa lembra um pouco Kafka e nos ajuda a constatar que a burocratização do trabalho e a infelicidade podem conduzir à alienação e à loucura.

 O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas
A matéria-prima da ficção de Vila-Matas é a própria literatura. Desapaecer, não escrever mais. O mal de Montano pode ser a cura para a morte anunciada da literatura. De onde vem as ameaças? Da hegemonia do mercado, do escritor-celebridade e da literatura-entretenimento.

Os emigrantes, de W.S. Sebald
Sebald: memória e história
Conta a trajetória de quatro indivíduos expatriados, cujas vidas foram danificadas pelas atrocidades da Segunda Guerra e do Holocausto. A escrita de Sebald já foi chamada de ensaística. Na verdade, ele consegue dosar de modo bastante convincente o relato memorialistico com o registro histórico, entremeados por uma trama ficcional. Uma boa porta de entrada para a obra de Sebald.

Os espólios de Poynton, de Henry James
Publicado pela primeira vez em 1896, este livro traz um Henry James em plena forma. Seus personagens são sempre bem construídos do ponto de vista da personalidade e James não poupa o esnobismo e o falso moralismo da aristocracia inglesa.


Respiração artificial, de Ricardo Piglia
Ricardo Piglia
Na Argentina da década de Setenta, um jovem escritor se vê envolvido numa trama policial. O pano de fundo é a tomada do poder pelos militares, que resultaria numa das mais sangrentas ditaduras do Cone Sul. Piglia é um dos escritores fundamentais da literatura contemporânea.





Italo Calvino
Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino
O escritor italiano escreve um romance para falar da linguagem do romance. A narrativa volta-se para si mesma, em movimentos circulares, feitos de paradas, reflexões, conversas com o leitor  e, também, histórias.


Uma luz em meu ouvido, de Elias Canetti
Segundo volume das memórias de Canetti, aqui o escritor búlgaro-austríaco relembra seus anos de formação em Berlim e Viena. Ao mesmo tempo, reconstitui em detalhes os momentos de crise, inflação, revoltas políticas e lutas culturais na Viena de Freud, Karl Kraus e outros. O olhar de Canetti e sua capacidade de reelaborar o passado são impressionantes.

Vox, de Nicholson Baker
 Dois desconhecidos, que vivem em locais opostos dos Estados Unidos, iniciam uma envolvente “relação sexual”. Confidências, fantasias, erotismo e o poder da sedução pela linguagem. Detalhe: tudo se passa numa conversa telefônica. Publicado em 1992, o livro prenuncia o erotismo na era digital.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...