sexta-feira, 22 de abril de 2011

Calvino e o “círculo do livro”


O escritor italiano Italo Calvino publicou Se um viajante numa noite de inverno em 1979. Já escrevi aqui que este é um romance sobre a escrita do romance. Fala de manuscritos perdidos, falsificações, editores, tradutores, estudiosos de literatura. Enfim, de todo aquele conjunto de agentes que compõe o campo literário.

O trecho selecionado a seguir parece antever a era da ficção amarrada com o merchandising. Até onde sei, o fenômeno não ocorreu com o romance, mas integra “naturalmente” a produção das novelas de TV.

A edição que possuo é do Círculo do Livro, editora que até a década de 1980 faturava alto com suas edições de best sellers vendidos por correspondência. Cheguei a comprar alguns livros por esse método, e ainda lembro que 99% do catálogo era de obras de auto-ajuda, romances açucarados e best sellers. As edições eram muito bem encadernadas e as capas coloridas, feitas para fisgar o leitor. 

Que essa obra de Calvino tenha sido publicada pelo Círculo do Livro é algo para o qual não tenho explicação. Escreve o italiano, a certa altura de seu meta-romance:

“Há alguns meses que Flannery entrou em crise; não escreve mais uma só linha; os numerosos romances que começou e pelos quais recebeu, de editores do mundo inteiro, adiantamentos em dinheiro que pressupunha financiamentos bancários internacionais, esses romances, que tinham contratos passados por intermédio de agências de publicidade internacionais, as quais já tinham especificado a marca das bebidas que tomariam as personagens, as localidades turísticas que frequentariam, quais seus modelos de alta costura, quais os fornecedores de mobiliário e de gadgets, esses romances estão incompletos, à mercê de uma crise espiritual tão inexplicável  quanto inesperada. Uma equipe de colaboradores secretos, especialistas na arte de imitar o estilo do mestre com todas as suas nuanças e maneirismos, mantém-se pronta a intervir para tapar os furos, arrematar e completar os textos redigidos pela metade, de tal modo que nenhum leitor possa distinguir entre as partes devidas à mão de um ou dos outros”. (Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno.  São Paulo, Círculo do Livro, s/d, p.116, trad. Margarida Salomão).
M.S.V.

domingo, 17 de abril de 2011

O primeiro parágrafo fisga o leitor


Sempre que estou numa livraria, em busca de um romance novo (ou antigo) para ler, me divirto lendo o primeiro parágrafo da história. Se o início de um romance me atrai, provavelmente vou continuar a lê-lo. Creio que todo escritor sabe que é preciso fisgar o leitor já nas primeiras linhas. Imagino uma antologia da literatura formada unicamente pelo primeiro parágrafo de romances, novelas e até contos. Transcrevo a seguir três inesquecíveis começos de histórias que li na juventude e que até hoje não cesso de reler.

“O Coronel destampou a lata do café e notou que apenas restava uma colherinha de pó. Tirou a panela do fogo, jogou no chão de barro batido a metade da água e raspou de faca todo o interior da vasilha, até botar na panela o que restava, uma mistura de raspas com ferrugem. Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectativa enquanto o café não fervia, o Coronel como que sentiu brotar de suas tripas cogumelos e lírios malignos. Era outubro. Eis uma manhã difícil de vencer, esta, mesmo para um homem de sua fibra, sobrevivente de tantas outras manhãs. Havia cinqüenta e seis anos – desde que acabara a última guerra civil – que ele não fazia outra coisa senão esperar. Outubro era uma dessas raras coisas que chegavam”. (Ninguém escreve ao coronel, de Gabriel García Márquez).

“Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno da solidão”. (O Continente 1, de Erico Veríssimo)

Na ardente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros vermelhos; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade”. (O Aleph, de Jorge Luis Borges)

M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...