domingo, 27 de novembro de 2011

Poesia da gramática e do sabor

Viena. Meu jornal de leitura diária aqui é o Wiener Zeitung (“Vina tzaitung”, como me ensinou insistentemente a senhora da banca da esquina), um standard diferente dos nossos, pois tem mais largura e menos comprimento. A edição deste fim de semana tem 48 páginas divididas em quatro cadernos e esta estrutura se repete nos demais dias. O jornal é sóbrio e tem um bom equilíbrio entre texto e imagem. Desde o início me chamou atenção na banca, por destoar de tablóides populares como Kronen Zeitung e Österreich, ou o Heute, distribuído gratuitamente por toda a cidade.

Os vienenses com quem tenho contato diário vêem meu esforço para aprender a pronúncia correta de palavras e expressões e me ensinam, com muito boa vontade. Mas observo que nem todos tem disposição para dominar com fluência o idioma da cidade em que moram.
Viena é hoje uma cidade com muitos imigrantes, vindos de continentes como Ásia e África. No metrô, vejo vários desses imigrantes falando alto ao celular, no seu idioma materno, indiferentes a quem está ao lado e sem se incomodar com o fato de tornarem pública sua condição de estrangeiros. Estão aqui para “ganhar a vida”, mas recusam a assimilação, a aculturação. Observo isso com imigrantes turcos, indianos e africanos.
Nas ruas e shoppings, há muitos restaurantes asiáticos. Turcos oferecem seus kebaps, pratos feitos com carne desfiada, arroz, salada, páprica e muitas fatias de pão. Os chineses e japoneses montam seus tradicionais bufês do tipo “coma tudo o que puder”. Estão sempre lotados; são baratos. Nesses restaurantes populares, comida asiática é sinônimo de comida barata. Na primeira semana fui vítima dessa culinária asiática feita para estrangeiros com muita fome.
Logo, porém, percebi que aquilo não era Viena. Foi então que comecei a frequentar os restaurantes administrados por vienenses. Outro cardápio, outro ambiente, outro serviço, outra clientela. E o mais surpreendente: os preços não são tão diferentes daqueles.
Como entender então essa separação? Cinco semanas é pouco para conhecer a resposta, mas arrisco um palpite: pode estar na predisposição para conhecer a cultura local, para se deixar influenciar pelo ambiente de Viena. E isso começa pela poesia da gramática e continua na gramática do sabor.
M.S.V.

sábado, 19 de novembro de 2011

Carpeaux, Canetti e o velho Instituto de Química de Viena

O Instituto de Química da Wahringerstrasse, em Viena, onde
Carpeaux e Canetti estudaram na década de 1920 
Viena. Em busca de rastros e pistas que me levem a reconstituir a trajetória do crítico e jornalista Otto Maria Carpeaux (1900-1978), conhecido aqui em Viena como Dr. Otto Karpfen, cheguei à esquina da Wahringerstrasse com a Turkengasse. 
É nesse endereço que está localizado o Instituto de Química da Universidade de Viena, onde o jovem Otto Karpfen estudou entre os anos 1920 e 1925.
Em suas memórias, o escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994) relembra os tempos em que estudou no mesmo Instituto da Wahringerstrasse, e descreve-o como “o velho instituto enfumaçado, situado no começo da Wahringerstrasse” (Uma luz em meu ouvido, Companhia das Letras, trad. Kurt Jahn). Não há dúvida, é este o prédio, pensei, parado na calçada da Wahringer, numa fria tarde de inverno.
Canetti viveu muitos anos em Viena e foi nessa cidade que conheceu Veza, com quem viveria por toda a vida. Veza era uma mulher liberal, extremamente culta e que se recusava a seguir os padrões socialmente estabelecidos para as mulheres. Nos anos 1920, frequentava os círculos literários de Viena e as famosas conferências públicas de Karl Kraus, que por essa época era um figura central na cidade, e que se tornaria um dos jornalistas mais importantes da Europa no século 20.
Carpeaux e Canetti estudaram Química no mesmo instituto e por pouco não foram colegas. Cinco anos mais jovem do que Carpeaux, Canetti formou-se em 1929, quatro anos depois do jornalista austríaco-brasileiro. Creio que não iria errar por muito se dissesse que ambos se “conheciam” dos corredores do velho instituto, onde hoje funciona o curso de Medicina Genética da Universidade de Viena. Talvez até tenham conversado.
Não conheço nenhum artigo de Carpeaux sobre Canetti, mas a trajetória de ambos tem muitas coincidências. Além da origem judaica, da juventude vivida em Viena e da mesma profissão de Químico – que ambos jamais iriam exercer – os dois deixaram a cidade em 1938, quando Hitler entrou triunfante na ex-capital do império austro-húngaro.
Canetti refugiou-se na Inglaterra e, depois da guerra, passou a viver na Suíça. Carpeaux, que abandonara formalmente o judaísmo em 1933, teve um destino bem diferente. Fugiu para a Holanda e, um ano depois, chegou ao Brasil.
Canetti tornou-se um dos principais escritores do século 20, premiado com o Nobel de Literatura em 1981. Carpeaux tomou um caminho sem volta: no Rio de Janeiro, deixou para trás não apenas seus pais, seus livros e sua amada pátria, mas também sua língua materna, pois passou a escrever em português. Poucas coisas podem ser tão avassaladoras para o ser quanto isso. Há os exemplos de Conrad e Nabokov com o inglês, mas eles fizeram uma opção. O caso de Carpeaux é diferente, pois ele não tinha escolha.
Carpeaux abandonou também uma promissora carreira de ensaísta e jornalista, que se abria para ele em Viena nos anos 1930. No Brasil, tornou-se um crítico extraordinário, que produziu artigos incansavelmente durante 35 anos para diversas publicações. Mas escrevia em português e estava do outro lado do Atlántico. Aqui em Viena ele praticamente não existe. Ou melhor, só existe até 1938. O idioma pode ser tanto uma abertura quanto um confinamento.
Nós, no Brasil, certamente ganhamos. Sua obra brasileira está aí para provar. Mas eu não tenho certeza quanto a ele, principalmente quando penso no talento e na dimensão que seus artigos e ensaios assumiam na década de 1930. E agora que descubro outros mais aqui em Viena, fico a pensar que, se tivesse ele tido condições de permanecer na Europa, sua obra teria uma dimensão mais profunda do que a que teve no Brasil, que traz as marcas da mediação cultural, do comentário, do trabalho de segunda ordem. Meu único conforto é pensar que se nós, no Brasil, ganhamos com sua inserção em nossa cultura literária, ele, ao cruzar o Atlântico em fuga desesperada, escapou da morte.
M.S.V.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

De turista a estrangeiro

Bicicletas para alugar na Maria Hilfer Strasse, Viena
        Viena. Depois de quase um mês vivendo o cotidiano de uma cidade, a condição de turista dá lugar à de estrangeiro. Isso possibilita um olhar ao mesmo tempo menos apressado e mais atento a detalhes que o cidadão que vive a rotina do dia-a-dia costuma ignorar. Como, por exemplo, o sujeito que estende o copo pedindo umas moedas na escada da estação do metrô Burgasse, onde passo duas vezes todos os dias.
        É essa mesma condição que me permite escutar nas ruas e no metrô os diferentes sotaques que, em alguns casos, imagino (apenas imagino, embora consiga perceber que não falam como o nativo de Viena), correspondam a dialetos de regiões como o Tirol, próximo da Itália, a Caríntia, mais ao Sul, ou a Upper Áustria, ao norte, que faz fronteira com a República Tcheca.
        Esses falares que escuto diariamente sem entender não impedem a comunicação, pois a norma culta do idioma alemão serve de parâmetro e dá a um estrangeiro com escasso vocabulário – como é o meu caso -- condições de se fazer entender. Há, de fato, muitos estrangeiros em Viena. Não estou falando dos turistas que lotam Innerestadt – como é chamado o centro histórico. Afinal, esta é uma cidade que desenvolveu, como poucas, a indústria do turismo.
Hofburg, em Innerestadt, Viena: turismo e história
       Refiro-me à grande quantidade de imigrantes oriundos da Ásia, da região dos Bálcãs e da África. Dados oficiais indicam que 20% da população de Viena, que hoje tem 1.700.000 habitantes, é formada por estrangeiros. Ou seja, há cerca de 340 000 pessoas de outros países vivendo na capital austrícaca.
        Os vienenses parecem não se incomodar com essa “invasão”. Até onde pude ver – e essa é uma visão bastante parcial – os imigrantes acabam suprindo a necessidade de mão-de-obra para setores como lojas, restaurantes, mercados, hotéis etc. Mas a Viena de Innerestadt, dos cafés chiques, do Hofburg e seus caros souvenirs, das dezenas de Museus e das centenas de atrações culturais parece ser uma realidade muito distante de todos esses imigrantes que chegam a Viena em busca de um futuro melhor.
M.S.V.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Passeando pelo centro de Viena

Viena, 04/11/2011, 11h30. A capital da Áustria pode ser exemplo para muitas coisas, mas poucas são tão eloquentes quanto a relação que esta cidade estabelece com seu velho e histórico centro. Enquanto a imensa maioria das médias e grandes cidades assiste inerte, ou até estimula, uma expansão urbana que vai do centro para a periferia, deixando imensas áreas que já contam com infra-estrutura caminharem para a degradação, em Viena parece ocorrer um movimento contrário. Aqui o poder público valoriza, restaura e mantém o dinamismo de sua área central, chamada de Innere Stadt.
O centro de Viena é uma espécie de cidade dentro da cidade, circundada por grandes avenidas que formam um único anel. O círculo começa no canal do Danúbio, segue pelas avenidas Shotternring, Karl Lueger Ring, Karl Renner Ring, Burgring, Opernring, Kartner Ring, Schubertstrasse Park Ring e Stuben Ring, para terminar novamente no Danúbio.
Esta fisionomia urbana tem origem no século 19, quando uma ampla reforma alterou significativamente a paisagem da cidade, transformando-se numa síntese dos valores e da cultura da alta classe média liberal vienense. É a Viena da Ringstrasse, cujos frutos ecoam ainda hoje quando se caminha por Innere Stadt.
É no interior desse anel que estão localizadas as dezenas de prédios monumentais que formam um magnífico conjunto arquitetônico, impossível de ser descrito em palavras. Lá estão os prédios do Parlamento, da Prefeitura (Rathaus), da Catedral de Viena, os dois gigantescos museus, o de História da Arte e o de História Natural, além do complexo do Hofburg. Tudo isso sem falar na Universidade, em outras igrejas e nos palácios, hoje transformados em hotéis, embaixadas, bancos, museus e mais museus.
Quando, numa fria tarde de sábado, caminhei pela primeira vez no meio desses monumentos, não pude conter a emoção, tal é a eloqüência desses símbolos, repletos de história e de cultura, e cuja imponência continua intacta graças ao contínuo trabalho de preservação do patrimônio e da memória da cidade.
M.S.V.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A língua em sua dimensão mais banal

Viena, 02/11/2011, 13h00. Já dizia Walter Benjamin que a linguagem não poderia ser definida por seu significado instrumental. Ao ressaltar o aspecto mágico e sua imediaticidade, o filósofo alemão buscava excluir esse viés utilitário da língua, para ele identificado com uma concepção burguesa da linguagem.

Ora, é exatamente essa dimensão instrumental, condenada por Benjamin, que estou vivenciando nesses dias aqui em Viena, em que me sinto completamente cercado pelo idioma alemão. No hotel, nas ruas, no shopping, nos restaurantes e nos cafés, e até mesmo no quarto, quando ligo o aparelho de TV, o idioma está por todos os lados, penetrando pelos ouvidos e pelos poros, como um vírus.

Confesso que, nos primeiros dias, senti-me acossado. Aos poucos, porém, passei a ficar à vontade com a situação. Afinal, essa viagem de pesquisa tem também esse objetivo: sanar as dificuldades de quem aprendeu o idioma depois dos 30 anos. Assim, minha única alternativa era procurar me comunicar em alemão, superando as limitações, insistindo muito e, principalmente, negando-me a usar o espanhol ou o inglês, idiomas muito utilizados em Viena. Tenho levado tão a sério esse propósito que, outro dia, no café da manhã, escutei a frase: “hoje tem salada de frutas...”. Refreei de imediato a saudade da língua materna e afastei-me rapidamente do casal que se servia no bufê, tudo para não iniciar uma conversa em português.

Não sei por quanto tempo conseguirei pôr em prática essa estratégia. Mas sei que a fase mais difícil com o idioma já passou. Afinal, desembarcar no aeroporto de uma cidade desconhecida, num país desconhecido, pedir um taxi, informar o local de destino, apresentar-me na recepção do hotel, pagar a hospedagem, contar o dinheiro e conferir o troco... Tudo isso resistindo ao convite constante para falar em espanhol ou inglês. Confesso que não tem sido fácil. Mas a cada uso “mal-bem” sucedido que faço do idioma, mais forças renovo nessa que parece ser uma eterna tarefa de Sísifo.

Essa atitude diária pode ser interpretada como um radicalismo de minha parte, ou até masoquismo. Na verdade, é apenas a reação de um brasileiro que estuda há muitos anos o alemão e que sempre se frustrou com os exercícios artificiais dos cursos de idioma. Mas que agora tem diante de si a oportunidade de conhecer a língua em sua dimensão mais banal, que é a de se fazer entender aos outros para garantir a sobrevivência diária.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...