domingo, 4 de novembro de 2012

Da memória de um leitor


Três romances me marcaram desde sempre: O Continente, de Érico Veríssimo, Ninguém escreve ao coronel, de Gabriel García Márquez e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Essas histórias remetem a três dimensões de minha formação: o primeiro fala das origens, em uma região específica do Brasil, e que sempre precisam ser superadas; o segundo expõe a contingência e as implicações de ser latino-americano. E o terceiro remete à tradição ocidental, da qual somos ramos tardios.
Esses três romances ajudaram-me e ainda me ajudam a entender quem sou e o que estou sendo. Compartilho, a seguir, as inesquecíveis primeiras linhas desses três romances. (M.S.V.)

“Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno da solidão”. (O Continente 1, de Erico Veríssimo)

“O Coronel destampou a lata do café e notou que apenas restava uma colherinha de pó. Tirou a panela do fogo, jogou no chão de barro batido a metade da água e raspou de faca todo o interior da vasilha, até botar na panela o que restava, uma mistura de raspas com ferrugem. Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectativa enquanto o café não fervia, o Coronel como que sentiu brotar de suas tripas cogumelos e lírios malignos. Era outubro. Eis uma manhã difícil de vencer, esta, mesmo para um homem de sua fibra, sobrevivente de tantas outras manhãs. Havia cinqüenta e seis anos – desde que acabara a última guerra civil – que ele não fazia outra coisa senão esperar. Outubro era uma dessas raras coisas que chegavam”. (Ninguém escreve ao coronel, de Gabriel García Márquez).

“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Adormeço’. E, meia hora depois, despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela”.(Em busca do tempo perdido, Vol. 1 - No caminho de Swann, de Marcel Proust).

domingo, 19 de agosto de 2012

Vida de professor, destino de escrevente


Os poucos e exigentes leitores deste blog me perguntam por que tenho postado com menos freqüência nos últimos meses. Respondo com uma palavra: é a vida de professor universitário, que, com suas demandas tantas, quase não deixa tempo para a prática de uma escrita livre, dirigida ao público amplo, e não aos pares, como ocorre na vida acadêmica atual. Pois são tantas as atividades e incumbências que um professor de universidade pública brasileiro precisa cumprir atualmente que tudo deve ser direcionado ao campo acadêmico. Tudo precisa resultar numa entrada no Lattes, sob o risco de nada “render”. Vejo-me hoje transformado num escrevente acadêmico, imerso num laborioso e angustiante trabalho de Sísifo. “Onde se escondeu o projeto de uma carreira autoral?”, pergunto-me.
Releio o ensaio “escritores e escreventes”, de Roland Barthes, incluído na coletânea Crítica e verdade (Ed. Perspectiva). O texto é da década de 1950, mas parece ter sido escrito ontem, pois ajuda, e muito, a pensar sobre as políticas implícitas no ato da escrita. Sua definição de escrevente, em oposição ao conceito de escritor, é lúcida e precisa.
“Os escreventes são homens transitivos: eles colocam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra é apenas um meio; para eles, a palavra suporta um fazer, ela não o constitui. Eis, pois, a linguagem reduzida à natureza de um instrumento de comunicação, de um veículo do ‘pensamento’. Mesmo se o escrevente concede alguma atenção à escritura, esse cuidado nunca é ontológico: não é preocupação”, escreve Barthes. Para o escrevente, o ato da escrita não é intransitivo. Sua escritura está sujeita a demandas, vindas do mercado, da academia, das instituições. Voltarei ao assunto.
M.S.V.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Na semana da Flip, a literatura de Jonathan Franzen


Franzen, capa da Time

Nesta quarta-feira começa a décima edição da Flip, a Festa Literária de Paraty. Embora o escritor homenageado seja o nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade, boa parte das atenções devem se dirigir para a presença de três dos mais importantes escritores em atividade hoje. Estarão presentes em Paraty o norte-americano Jonathan Franzen, o inglês Ian McEwan e o espanhol (na verdade, catalão) Enrique Vila-Matas. Três vozes bem distintas uma da outra, mas extremamente significativas da literatura praticada neste século XXI.
Percorro livrarias em São Paulo e vejo que os livros de Franzen inundam as prateleiras. Até uma coletânea de artigos dele (“Como ficar sozinho?”) foi traduzida. Franzen já está no Brasil e, pelo que leio, deseja conhecer um pouco do país após seus compromissos na Flip. Quer visitar a Bahia e o Pantanal, onde pretende fotografar pássaros, seu hobby favorito.
Aproveito o fait-divers em torno de Franzen e retomo a leitura interrompida de Liberdade, romance lançado no final do ano passado e que chegou aclamado como o “livro do ano e do século”. Não é nada disso. Já li resenhas comparando Liberdade a Guerra e Paz, de Tolstoi. Um enorme exagero, talvez motivado pelo fato de que Patty, a protagonista, aparece lendo o romance de Tolstoi... Isso não basta. Aliás, há muita estratégia de marketing na visibilidade de Franzen. A narrativa de Liberdade é longa demais, há digressões demais.
Para viver de sua atividade, um escritor precisa de mercado. Romances longos, como este, que tem 600 páginas, são bons para o mercado editorial, pois o preço de capa é maior, assim como os lucros do autor, que precisa viver disso. Considerando que um escritor de qualidade (como é o caso de Franzen) compete com inimigos poderosos, como a indústria do audiovisual, a internet e com o colapso do hábito de leitura, nada mais justo que ele se preocupe com a economia de seu trabalho. Um livro de 100 páginas gera lucros ínfimos para todo o circuito de produção editorial.
Mas do ponto de vista exclusivamente narrativo, me parece inegável que Liberdade poderia ter a metade do seu tamanho. Uma crítica efetivamente isenta de uma obra precisa separar todo esse aparato mercadológico que circunscreve o lançamento de um produto no mercado da obra em si. Tinha razão Pierre Bourdieu quando escreveu que a indústria de bens simbólicos procura sempre esconder a economia que faz o circuito funcionar.
Em Liberdade, Franzen tenta retomar a velha tradição do romance social, bem ao gosto do leitor do século 19 e 20, antes que as vanguardas operassem a viravolta narrativa. O cenário do livro é o Meio Oeste dos EUA, onde se passam histórias familiares contemporâneas recheadas de relacionamentos confusos, sentimentos difusos, amizade, paixão, traição... Como numa série de TV.
Mas uma coisa não se pode negar: ele escreve muito bem. O livro tem estilo ágil, vocabulário moderno, linguagem despojada, temas do dia-a-dia, como ambientalismo, antidepressivos, crise financeira. Leio 30 páginas de uma só vez. Desta proeza somente são capazes os grandes narradores. Penso em Stendhal, e na Cartucha de Parma, cuja leitura alterno com o romance de Franzen.
M.S.V.

domingo, 24 de junho de 2012

“Tigres no espelho”: ensaios de George Steiner


George Steiner

Tem livro novo de George Steiner nas livrarias. “Tigres no espelho e outros textos da The New Yorker” (Globo Livros, R$ 55) reúne 28 ensaios publicados originalmente na conceituada revista norte-americana. Durante muitos anos seus ensaios foram minha leitura constante. Agora temos nova oportunidade de conhecer sua prosa cheia de inteligência e verve, que honra o leitor, numa época em que “até mesmo as pessoas instruídas têm apenas tintura de conhecimento clássico ou teológico”. Sim, Steiner tem familiaridade com diferentes culturas e está em casa quando falar de literaturas e autores os mais diversos, e em diferentes idiomas.
George Steiner nasceu em Paris, em 1929, mas foi educado na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua formação é incomum, rara para os dias de hoje: foi alfabetizado em francês, inglês e alemão. Li certa vez uma entrevista dele na Magazine Litteraire, em que ele lembra como foram fundamentais para sua formação as sessões semanais de leitura de Shakespeare, com uma professora escocesa contratada pelo pai, ou as aulas de latim e grego que freqüentou ainda jovem. Seus ensaios refletem toda essa formação e as leituras que faz da obra literária só ganham com esse refinamento. E o principal nos dias de hoje: ele escreve com legibilidade, clareza e sem dar concessões ao gosto médio.
No artigo que dá título ao livro, Steiner analisa a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges. No trecho a seguir, ele fala sobre a relação de Borges com a tradição literária, que foi a substância de sua obra: “Borges é um curador, um tesoureiro de ninharias despercebidas, um indexador das antigas verdades e perdidas conjecturas que se amontoam no sótão da história”. Um diagnóstico certeiro sobre o autor de O Aleph.
George Steiner é um dos melhores ensaístas surgidos no século 20 e conseguiu construir uma obra de crítica (cultural e literária) sem sucumbir às contingências da escrita acadêmica. Seus textos são límpidos e repletos de erudição. É leitura obrigatória para os dias de hoje.
M.S.V.

sábado, 9 de junho de 2012

A história de uma família numa coleção de netsuquês


O Palácio Ephrussi, na Ringstrasse, em Viena


Transformar em livro a história de uma família é uma idéia cujos resultados costumam chatear o leitor, que em geral se vê diante de páginas que desfilam elogios e que só constróem imagens oficiais dos biografados. Não é o que ocorre com A lebre com olhos de âmbar, de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca), que, conta a história de uma coleção de miniaturas feitas de marfim e madeira que pertenceu aos Ephrussis, uma família originária de Odessa, na Rússia, que se estabeleceu na França e na Áustria no final do século 19.
Os Ephrussis eram de origem judaica e fizeram fortuna no setor financeiro, ao mesmo tempo em que revelaram-se grandes colecionadores de obras de arte. Ao herdar a coleção de miniaturas, o autor, Edmund de Waal (desconhecido por aqui, mas parece que e reconhecido lá fora como ceramista) decide mergulhar na história para resgatar a trajetória de seus avós.
Parte para Paris e Viena em busca de documentos de seus antepassados e reconstitui a trajetória de uma família que presenciou fatos históricos dos mais dramáticos dos séculos 19 e 20, como o colapso do Império Austro-Húngaro, a crise austríaca das primeiras décadas do século e a anexação da Áustria pelo Nazismo, com o consequente confisco de suas propriedades.
O fio narrativo do livro é essa coleção de 264 miniaturas, que o autor herda de seu tio-avô, e que são chamados de netsuquês. Como explica Sérgio Telles em sua coluna de hoje em OESP, eram usados pelos japoneses para prender uma pequena bolsa na faixa do quimono. Portanto, um item chique da indumentária nipônica.
Mas é nos momentos em que fala do ramo austríaco de seus antepassados que o livro de Edmund de Waal me interessa. Em Viena, os Ephrussis moravam num belíssimo palácio feito de mármore, localizado na Ringstrasse, em frente à Universidade de Viena e quase ao lado da Votivkirche, que hoje passa por restauro de sua fachada. As descrições da cidade, dos hábitos da família, as leituras dos filhos, do contato natural com a arte que só se adquire em família... Enfim, uma atmosfera que encanta o leitor, construída numa escrita singela e cativante. Um livro que surpreende. M.S.V.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Arte e resistência na China

"Bicicleta": instalação de Ai Weiwei

Ele passou quase três meses na cadeia e hoje vive em prisão domiciliar. Teve seu ateliê, que custou US$ 1,2 milhão, totalmente destruído e seu blog retirado do ar. Ai Weiwei, um dos mais conhecidos artistas chineses, sofreu todas essas ações por um único motivo: manifestou suas opiniões publicamente. Na China, isso é crime.
A imprensa chinesa está proibida de falar no seu nome e ele também não pode se manifestar, mas vem burlando essa proibição graças ao Twitter. Na China, o serviço de microblogs pode ser acessado por redes privadas, o que impede que seja bloqueado pelo governo, a exemplo da internet.
Recentemente, a Folha de S. Paulo publicou uma entrevista exclusiva com o artista. Mesmo proibido de falar à imprensa, inclusive do exterior, Weiwei não se omitiu de expressar suas opiniões e lutar pela liberdade individual na China.
O artista chinês Ai Weiwei
“Fui espancado, quase terminei meus dias no hospital por causa das lesões, destruíram o meu ateliê, me aplicaram uma enorme multa tributária. Tudo sob ordens vindas não se sabe de onde. Não são apenas autoridades. Toda a imprensa chinesa não pode nem me criticar”, conta o artista ao repórter Fabiano Maisonnave.
A situação é tão absurda que, recentemente, jovens estudantes foram presos e interrogados apenas por que retuitaram informações. “Os tuítes não foram nem escritos por eles. Isso pode causar desaparecimentos por semanas. E muitos estão mentalmente doentes. As pessoas começam a ter crises psicológicas por causa desse tipo de tratamento”, relata Weiwei.
Numa sociedade amordaçada, cabe aos artistas assumir funções que, em locais onde há liberdade de expressão, são desempenhadas pela mídia. Mas na China não há mídia livre, nem oposição organizada. Somente vozes, solitárias e corajosas, como a de Ai Weiwei. M.S.V.

domingo, 25 de março de 2012

Vida longa para o romance

O escritor chileno Roberto Bolaño
Dia desses perguntei aos meus alunos se costumavam ler romances. Qual não foi minha surpresa ao constatar que mais da metade da classe respondeu de forma positiva à pergunta. Percebi então que a resposta de meus alunos contrariava um discurso muito comum nos meios e nas mídias intelectualizadas, que insiste em afirmar que o romance não é mais culturalmente relevante.
A resposta de meus jovens alunos contrariava também o argumento do crítico norte-americano Lee Siegel, que, em artigo (que acabo de ler) na última edição da revista Serrote, insiste na tese do fim da relevância cultural desse gênero. “Pergunte a si mesmo quando foi a última vez que leu um romance que o comoveu como um filme o comove”, escreve ele.
De minha parte, respondo com tranquilidade: nos últimos anos, as obras de J. M. Coetze e Roberto Bolaño têm me marcado mais do que qualquer outra experiência artística. Tão forte, comovente e chocante tem sido a leitura dos romances desses dois autores que preciso alterná-la com mergulhos em portos seguros da literatura, ou seja, nas tranqüilizantes releituras daqueles autores que são nossos velhos conhecidos, como os contos de Borges e as narrativas de Kafka. Se isso não é relevância cultural, então o que será?
Creio que, quando fala de relevância cultural, Siegel está pensando em audiência, recorde de bilheteria, repercussão junto ao grande público. Ora, não dá para comparar um romance como Liberdade, de Jonathan Franzen (em cujas mais de 600 páginas continuo mergulhado, não obstante as interrupções sucessivas que preciso fazer), com Avatar, só pra ficar em dois exemplos recentes produzidos nos EUA. A resposta de meus alunos é eloquente e motivo de esperança: vida longa para o romance.
M.S.V.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A ambição de Julien Sorel

O escritor francês Stendhal (1783-1842)
Pode parecer muito distante no tempo, mas a literatura dos séculos 18 e 19 tem muito a nos dizer sobre um dos sentimentos que mais provoca angústia ao ser humano: a ambição. Julien Sorel, o personagem principal de O vermelho e o negro, romance de Stendhal, publicado em 1830, encarna como poucos esse sentimento, frequentemente condenado pelo pensamento médio, mas inerente ao humano, embora não se manifeste em todos os seres humanos.
Até o século 18, os personagens principais da literatura eram, via de regra, pícaros, sujeitos miseráveis cujas aventuras se confundiam com a luta pela própria sobrevivência. Mas uma nova idéia começa a surgir, na esteira de um movimento maior, de afirmação do íntimo e do individualismo. Jovens cheios de sonho e ambição chegam às grandes cidades dispostos a “vencer”: isso significa conquistar o amor de belas e ricas mulheres e ganhar espaço na hierarquia social.
No século 19, esse movimento chegará ao seu apogeu com a obra de Stendhal, e o apaixonado e ambicioso Julien é personagem típico dessa nova cultura romanesca. “A ambição se converte num dos princípios sobre os quais se funda a sociedade liberal oitocentista”, escreve Francesco Fiorentino, professor de Literatura da Universidade de Roma, em artigo sobre a ambição no romance de Stendhal, publicado na coletânea A cultura do romance ((Cosac Naify, 1.120 págs., trad. de Denise Bottman).
Ora, a ambição é uma paixão que não tem nada de romântica. Na economia técnico-narrativa do romance realista, ela gera movimentos, histórias e transformações que viram enredo.
Mas Julien Sorel não é simplesmente um ambicioso: ele tem consciência de sua posição subalterna na hierarquia social e precisa superar o complexo de inferioridade, plantado em sua personalidade pelas origens humildes. Embora tenha adquirido uma boa cultura, não tem dinheiro suficiente para alavancar sua carreira. E para os que vêm de baixo, o principal obstáculo à realização da ambição é este: ter acesso à cultura, mas não aos privilégios. “Esse ambicioso é também um herói solitário da luta de classes. Quer vencer, mais que se integrar”, escreve Francesco Fiorentino.
A ambição tem uma lei implacável, ainda mais com ambiciosos de origem humilde, para quem o passado é uma vergonha e uma ameaça constante, que pode a qualquer momento deslegitimar as conquistas pessoais.
Se o passado precisa ser soterrado no mais íntimo do ser, para o ambicioso o futuro é sinônimo de cálculo, tática, movimento projetado de jogadas. “Errar pode significar comprometer para sempre, ou pelo menos por muito tempo, a possibilidade de avançar”, escreve o estudioso italiano. Por isso Julien busca realizar logo suas ambições, antes de envelhecer. O fracasso está sempre à espreita dos ambiciosos desprovidos de privilégios e de linhagem. Eis a lei inexorável da ambição.
M.S.V.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A vingança de Emma Zunz

Nos últimos tempos, tenho pensado muito em vingança. Não no sentido banal da palavra, mas na vingança enquanto resposta a uma injustiça. Mais ou menos como o que fez Emma Zunz, a personagem de Jorge Luis Borges no conto homônimo, incluído em O Aleph (Ed. Globo, Trad. de Flávio José Cardozo). No desejo de vingar seu pai, injustamente acusado de um desfalque no caixa da empresa em que trabalhou a vida toda, ela monta uma estratégia limite, tão terrível quanto eficaz.
A vingança de Emma, que resultou em um assassinado, não a levou ao castigo. A justiça humana não tem lugar nesse conto de Borges. Pois Emma valeu-se do próprio corpo no corajoso estratagema que montou. Nem o asco de si mesma, nem a tristeza de ter chegado tão longe impediram-na de levar a cabo o planejado.
Foram dois tiros a queima roupa e o culpado estava no chão. Mas ela não podia ser castigada: afinal, era um ato de vingança com fim justo. Quando a polícia chegou, acusou o morto de ter abusado dela. Antes, porém, tomou providências para garantir a credulidade do ocorrido: procurou um homem na zona portuária da cidade com o fim único de forjar um estupro. O homem tomou-a por uma prostituta, pagou pelo serviço e desapareceu.
A atitude fria e calculista, com sabor de asco e tristeza, tinha um propósito: o homem que provocou injustamente a desgraça de seu pai, agora seria punido. Tão logo o matou, contou à policia sua versão, que se impôs a todos, já que, em essência, estava certa. A justiça, tardia, havia sido feita, embora tarde demais para mudar o destino de seu pai.
A narrativa de Borges é precisa, econômica nas palavras, mas plena de imagens, como no trecho a seguir: “Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que sofrera; só eram falsas algumas circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios”.
M.S.V. 

domingo, 8 de janeiro de 2012

Thomas Bernhard, uma (re)descoberta literária

Thomas Bernhard, escritor austríaco nascido na Holanda

Poucas coisas são tão encantadoras na relação do leitor com a obra literária quanto a redescoberta de um texto ou o reencontro com um autor que havia muito não o líamos. Refiro-me ao escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), que redescobri neste período em que estive em Viena. Até então, havia lido apenas, no início dos anos 1990, O sobrinho de Wittgenstein (RJ: Rocco, 1992, trad. de Ana Maria Scherer) e conhecia, de orelha, romances como Extinção, Árvores Abatidas e O Náufrago, todos já traduzidos para o português.
Eis que em Viena descobri Heldenplatz, uma peça teatral que estreou no Burgteather em 1988, marcando de forma polêmica os 50 anos do Anschluss da Áustria com a Alemanha de Hitler. Heldenplatz, ou Praça dos Heróis, era o lugar que mais gostava de ir quando estava em Viena, seja para passear ou simplesmente sentar e ficar observando o movimento dos turistas e a paisagem (os monumentos, o passado, os traumas de uma nação fascinante e enigmática). Era também o meu caminho para a Biblioteca Nacional Austriaca, de onde saía à noite, feliz após mais um dia de pesquisa. Heldenplatz ficará para sempre como o meu particular cartão postal de Viena.
Embora tenha nascido na Holanda, Thomas Bernhard pertence à literatura austríaca, pois foi na Áustria que escreveu sua obra e construiu sua carreira. Mudou-se ainda criança com os pais para Viena. Mais tarde, morou em Salzburg e, por fim, numa propriedade rural no interior do país.
Meus Prêmios (São Paulo: Companhia das Letras, 2011, trad. de Sergio Tellaroli), livro que leio agora, junto com uma biografia do autor escrita por Manfred Mittermayer (Thomas Bernhard - Leben, Werk, Wirkung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2006) reúne textos que contam a conturbada relação de Bernhard com as inúmeras premiações em dinheiro que recebeu ao longo de sua vida de escritor.
Em 1967, ao saber da notícia de que seria contemplado com o Prêmio Nacional Austríaco de Literatura, Bernhard estava em dificuldades financeiras. Portanto, gostaria, mas não podia recusar o prêmio. No trecho a seguir, ele expõe com sinceridade os sentimentos de amor e de ódio (leia-se necessidade e rejeição) com os prêmios que recebeu durante sua carreira. “Arruinava-me o estômago a idéia de, quase aos quarenta anos, precisar receber um prêmio que cumpria reservar aos jovens de vinte, e eu tinha, ademais, uma relação tensa com meu país, como tenho ainda hoje, em grau bem mais acentuado (...)”.
A trajetória de Thomas Bernhard foi permeada de conflitos com as instituições culturais do país que adotou para viver e escrever. Seu projeto era “escrever sobre o que ninguém mais escrevia”. Sua obra contém uma forte crítica à influência do nacional-socialismo e do catolicismo nos rumos tomados pela Áustria no século 20.
Avesso a corporações de escritores e de intelectuais, sua atitude independente causava desconfiança e mal-estar. Firmou-se com o tempo. Mas foram os prêmios literários recebidos que lhe permitiram defender suas convicções e sua escrita. Não é espantoso constatar que ele recebesse os prêmios apesar de tudo isso? Voltarei ao assunto, enquanto redescubro e descubro a obra de Thomas Bernhard.
M.S.V.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Uma lágrima para Daniel Piza

O ano de 2012 iniciou com uma notícia triste para o jornalismo brasileiro: a morte de Daniel Piza, ocorrida na sexta-feira à noite, dia 30, aos 41 anos. Não o conhecia pessoalmente; era apenas um leitor de sua coluna semanal no “Caderno 2” de O Estado de S. Paulo e acompanhava, assim como muitos leitores, sua brilhante trajetória de crítico e de escritor.
Jornalista com sólida formação cultural, Daniel Piza era formado em Direito, não fez faculdade de Jornalismo e tudo indica que sua cultura era fruto muito mais do ambiente familiar e de um tenaz esforço individual do que de uma educação formal, escolar.
Era capaz de escrever sobre vários assuntos, com inteligência e agilidade. O amplo espectro de seus interesses, que ia da política às artes, passando pelo futebol, e a imagem de jovem culto e extremamente produtivo eram os traços marcantes de sua persona pública. Praticou, como poucos, o jornalismo de ideias, combinando erudição com divulgação, sem vulgarização. Nem sempre concordava com suas opiniões e, com freqüência, me irritava com o esforço que fazia para ser sempre o primeiro a ler todos os lançamentos (livros, Cds, filmes, teatro etc), numa voracidade e velocidade pouco verossímeis com o ritmo de vida que temos hoje e com a correria da Redação.
Não sei se conseguia, de fato, tempo para ler e consumir todos os produtos culturais sobre os quais escrevia. Mas o fazia com convicção e personalidade. Publicou 17 livros, a imensa maioria de divulgação, mas nem por isso menos importante. De sua produção, o destaque fica para a biografia de Machado de Assis, livro que se lê com prazer. Não é preciso muito esforço para imaginar que outras obras viriam, pois talento e idéias não lhe faltavam.
O título deste post é uma pequena homenagem a Piza, pois era assim que ele intitulava seus comentários sobre a morte de alguma personalidade. Muito triste, muito trágica a sua morte repentina. Merece, sem dúvida, muito mais do que uma lágrima. Daniel Piza fará falta no jornalismo brasileiro. Seu exemplo e seus textos não devem ficar no esquecimento da página de jornal.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...