terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A vingança de Emma Zunz

Nos últimos tempos, tenho pensado muito em vingança. Não no sentido banal da palavra, mas na vingança enquanto resposta a uma injustiça. Mais ou menos como o que fez Emma Zunz, a personagem de Jorge Luis Borges no conto homônimo, incluído em O Aleph (Ed. Globo, Trad. de Flávio José Cardozo). No desejo de vingar seu pai, injustamente acusado de um desfalque no caixa da empresa em que trabalhou a vida toda, ela monta uma estratégia limite, tão terrível quanto eficaz.
A vingança de Emma, que resultou em um assassinado, não a levou ao castigo. A justiça humana não tem lugar nesse conto de Borges. Pois Emma valeu-se do próprio corpo no corajoso estratagema que montou. Nem o asco de si mesma, nem a tristeza de ter chegado tão longe impediram-na de levar a cabo o planejado.
Foram dois tiros a queima roupa e o culpado estava no chão. Mas ela não podia ser castigada: afinal, era um ato de vingança com fim justo. Quando a polícia chegou, acusou o morto de ter abusado dela. Antes, porém, tomou providências para garantir a credulidade do ocorrido: procurou um homem na zona portuária da cidade com o fim único de forjar um estupro. O homem tomou-a por uma prostituta, pagou pelo serviço e desapareceu.
A atitude fria e calculista, com sabor de asco e tristeza, tinha um propósito: o homem que provocou injustamente a desgraça de seu pai, agora seria punido. Tão logo o matou, contou à policia sua versão, que se impôs a todos, já que, em essência, estava certa. A justiça, tardia, havia sido feita, embora tarde demais para mudar o destino de seu pai.
A narrativa de Borges é precisa, econômica nas palavras, mas plena de imagens, como no trecho a seguir: “Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que sofrera; só eram falsas algumas circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios”.
M.S.V. 

domingo, 8 de janeiro de 2012

Thomas Bernhard, uma (re)descoberta literária

Thomas Bernhard, escritor austríaco nascido na Holanda

Poucas coisas são tão encantadoras na relação do leitor com a obra literária quanto a redescoberta de um texto ou o reencontro com um autor que havia muito não o líamos. Refiro-me ao escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), que redescobri neste período em que estive em Viena. Até então, havia lido apenas, no início dos anos 1990, O sobrinho de Wittgenstein (RJ: Rocco, 1992, trad. de Ana Maria Scherer) e conhecia, de orelha, romances como Extinção, Árvores Abatidas e O Náufrago, todos já traduzidos para o português.
Eis que em Viena descobri Heldenplatz, uma peça teatral que estreou no Burgteather em 1988, marcando de forma polêmica os 50 anos do Anschluss da Áustria com a Alemanha de Hitler. Heldenplatz, ou Praça dos Heróis, era o lugar que mais gostava de ir quando estava em Viena, seja para passear ou simplesmente sentar e ficar observando o movimento dos turistas e a paisagem (os monumentos, o passado, os traumas de uma nação fascinante e enigmática). Era também o meu caminho para a Biblioteca Nacional Austriaca, de onde saía à noite, feliz após mais um dia de pesquisa. Heldenplatz ficará para sempre como o meu particular cartão postal de Viena.
Embora tenha nascido na Holanda, Thomas Bernhard pertence à literatura austríaca, pois foi na Áustria que escreveu sua obra e construiu sua carreira. Mudou-se ainda criança com os pais para Viena. Mais tarde, morou em Salzburg e, por fim, numa propriedade rural no interior do país.
Meus Prêmios (São Paulo: Companhia das Letras, 2011, trad. de Sergio Tellaroli), livro que leio agora, junto com uma biografia do autor escrita por Manfred Mittermayer (Thomas Bernhard - Leben, Werk, Wirkung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2006) reúne textos que contam a conturbada relação de Bernhard com as inúmeras premiações em dinheiro que recebeu ao longo de sua vida de escritor.
Em 1967, ao saber da notícia de que seria contemplado com o Prêmio Nacional Austríaco de Literatura, Bernhard estava em dificuldades financeiras. Portanto, gostaria, mas não podia recusar o prêmio. No trecho a seguir, ele expõe com sinceridade os sentimentos de amor e de ódio (leia-se necessidade e rejeição) com os prêmios que recebeu durante sua carreira. “Arruinava-me o estômago a idéia de, quase aos quarenta anos, precisar receber um prêmio que cumpria reservar aos jovens de vinte, e eu tinha, ademais, uma relação tensa com meu país, como tenho ainda hoje, em grau bem mais acentuado (...)”.
A trajetória de Thomas Bernhard foi permeada de conflitos com as instituições culturais do país que adotou para viver e escrever. Seu projeto era “escrever sobre o que ninguém mais escrevia”. Sua obra contém uma forte crítica à influência do nacional-socialismo e do catolicismo nos rumos tomados pela Áustria no século 20.
Avesso a corporações de escritores e de intelectuais, sua atitude independente causava desconfiança e mal-estar. Firmou-se com o tempo. Mas foram os prêmios literários recebidos que lhe permitiram defender suas convicções e sua escrita. Não é espantoso constatar que ele recebesse os prêmios apesar de tudo isso? Voltarei ao assunto, enquanto redescubro e descubro a obra de Thomas Bernhard.
M.S.V.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Uma lágrima para Daniel Piza

O ano de 2012 iniciou com uma notícia triste para o jornalismo brasileiro: a morte de Daniel Piza, ocorrida na sexta-feira à noite, dia 30, aos 41 anos. Não o conhecia pessoalmente; era apenas um leitor de sua coluna semanal no “Caderno 2” de O Estado de S. Paulo e acompanhava, assim como muitos leitores, sua brilhante trajetória de crítico e de escritor.
Jornalista com sólida formação cultural, Daniel Piza era formado em Direito, não fez faculdade de Jornalismo e tudo indica que sua cultura era fruto muito mais do ambiente familiar e de um tenaz esforço individual do que de uma educação formal, escolar.
Era capaz de escrever sobre vários assuntos, com inteligência e agilidade. O amplo espectro de seus interesses, que ia da política às artes, passando pelo futebol, e a imagem de jovem culto e extremamente produtivo eram os traços marcantes de sua persona pública. Praticou, como poucos, o jornalismo de ideias, combinando erudição com divulgação, sem vulgarização. Nem sempre concordava com suas opiniões e, com freqüência, me irritava com o esforço que fazia para ser sempre o primeiro a ler todos os lançamentos (livros, Cds, filmes, teatro etc), numa voracidade e velocidade pouco verossímeis com o ritmo de vida que temos hoje e com a correria da Redação.
Não sei se conseguia, de fato, tempo para ler e consumir todos os produtos culturais sobre os quais escrevia. Mas o fazia com convicção e personalidade. Publicou 17 livros, a imensa maioria de divulgação, mas nem por isso menos importante. De sua produção, o destaque fica para a biografia de Machado de Assis, livro que se lê com prazer. Não é preciso muito esforço para imaginar que outras obras viriam, pois talento e idéias não lhe faltavam.
O título deste post é uma pequena homenagem a Piza, pois era assim que ele intitulava seus comentários sobre a morte de alguma personalidade. Muito triste, muito trágica a sua morte repentina. Merece, sem dúvida, muito mais do que uma lágrima. Daniel Piza fará falta no jornalismo brasileiro. Seu exemplo e seus textos não devem ficar no esquecimento da página de jornal.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...