sábado, 18 de fevereiro de 2012

A ambição de Julien Sorel

O escritor francês Stendhal (1783-1842)
Pode parecer muito distante no tempo, mas a literatura dos séculos 18 e 19 tem muito a nos dizer sobre um dos sentimentos que mais provoca angústia ao ser humano: a ambição. Julien Sorel, o personagem principal de O vermelho e o negro, romance de Stendhal, publicado em 1830, encarna como poucos esse sentimento, frequentemente condenado pelo pensamento médio, mas inerente ao humano, embora não se manifeste em todos os seres humanos.
Até o século 18, os personagens principais da literatura eram, via de regra, pícaros, sujeitos miseráveis cujas aventuras se confundiam com a luta pela própria sobrevivência. Mas uma nova idéia começa a surgir, na esteira de um movimento maior, de afirmação do íntimo e do individualismo. Jovens cheios de sonho e ambição chegam às grandes cidades dispostos a “vencer”: isso significa conquistar o amor de belas e ricas mulheres e ganhar espaço na hierarquia social.
No século 19, esse movimento chegará ao seu apogeu com a obra de Stendhal, e o apaixonado e ambicioso Julien é personagem típico dessa nova cultura romanesca. “A ambição se converte num dos princípios sobre os quais se funda a sociedade liberal oitocentista”, escreve Francesco Fiorentino, professor de Literatura da Universidade de Roma, em artigo sobre a ambição no romance de Stendhal, publicado na coletânea A cultura do romance ((Cosac Naify, 1.120 págs., trad. de Denise Bottman).
Ora, a ambição é uma paixão que não tem nada de romântica. Na economia técnico-narrativa do romance realista, ela gera movimentos, histórias e transformações que viram enredo.
Mas Julien Sorel não é simplesmente um ambicioso: ele tem consciência de sua posição subalterna na hierarquia social e precisa superar o complexo de inferioridade, plantado em sua personalidade pelas origens humildes. Embora tenha adquirido uma boa cultura, não tem dinheiro suficiente para alavancar sua carreira. E para os que vêm de baixo, o principal obstáculo à realização da ambição é este: ter acesso à cultura, mas não aos privilégios. “Esse ambicioso é também um herói solitário da luta de classes. Quer vencer, mais que se integrar”, escreve Francesco Fiorentino.
A ambição tem uma lei implacável, ainda mais com ambiciosos de origem humilde, para quem o passado é uma vergonha e uma ameaça constante, que pode a qualquer momento deslegitimar as conquistas pessoais.
Se o passado precisa ser soterrado no mais íntimo do ser, para o ambicioso o futuro é sinônimo de cálculo, tática, movimento projetado de jogadas. “Errar pode significar comprometer para sempre, ou pelo menos por muito tempo, a possibilidade de avançar”, escreve o estudioso italiano. Por isso Julien busca realizar logo suas ambições, antes de envelhecer. O fracasso está sempre à espreita dos ambiciosos desprovidos de privilégios e de linhagem. Eis a lei inexorável da ambição.
M.S.V.

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