Das memórias de Elias Canetti: “Numa cidade como Salzburg, as pessoas são
receptivas aos escritores”. Mas o que faz de um escritor um escritor? Raduan
Nassar escreveu um ou dois livros e abandonou a literatura. Tornou-se canônico.
E há escritores que permanecem vivos mais por sua atuação na mídia do que por
suas criações. Tornam-se marketing.
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Planejou durante muitos anos uma trajetória a ser construída com a
publicação regular, contínua de seus projetos de escrita. A vida acadêmica e o
excesso de trabalho o conduziram a outra trilha. Depois de publicar um primeiro
livro de ensaios em 1995 e de voltar em 2002 com um estudo sobre um importante
crítico literário, não conseguiu dar continuidade a uma trajetória que apenas se
esboçara. Passaram-se, desde então, dez anos, gastos com a inserção na vida
acadêmica, as aulas na graduação e na pós-graduação, o redirecionamento de
pesquisas e de publicações, a orientação de alunos, a gestão, as guerras, a infâmia,
os aborrecimentos. É assim que chega aos cinqüenta anos: como um escrevente; alguém
que usa a palavra como um meio, um instrumento.
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Eis um trecho de Barthes que não se cansa de repetir: “os escreventes são
homens transitivos: eles colocam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o
qual a palavra é apenas um meio; para eles, a palavra suporta um fazer, ela não
o constitui. Eis, pois, a linguagem reduzida à natureza de um instrumento de
comunicação, de um veículo do ‘pensamento’. Mesmo se o escrevente concede
alguma atenção à escritura, esse cuidado nunca é ontológico: não é
preocupação”. Para o escrevente, ao contrário, o ato da escrita não é
intransitivo. Sua escritura está sujeita a demandas, vindas do mercado, da
academia, das instituições.
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“Não vivo do que escrevo, mas vivo para escrever, afirma o escritor
Sinval Medina, que acaba de lançar, sem qualquer alarde o belíssimo O cavaleiro da terra de ninguém, uma
biografia romanceada do sertanista e rei dos tropeiros Cristóvão Pereira de
Abreu. Uma narrativa fascinante que, apesar dos arcaísmos de linguagem, prende
o leitor do início ao fim. Mas voltemos à frase de Sinval, pois ela demarca seu
lugar de fala. Eis um escritor que escolhe seus temas, constrói seu estilo e
ordena suas narrativas sem transigir com o mercado, com a mídia, com a
academia. Isso talvez explique em parte sua pouca visibilidade no conjunto da
literatura atual, em que as estratégias midiáticas garantem um lugar nesse
perverso regime de visibilidade. Mas Sinval Medina é um escritor cuja produção
apresenta regularidade, desde o ano de 1980, quando publicou seu primeiro
romance, Liberdade condicional. Não
vive do que escreve, mas vive para escrever. Eis um escritor no sentido pleno
da palavra, e que não sofre do mal de Montano.
M.S.V.