quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O escrevente aos cinqüenta (o que faz um escritor?)

Das memórias de Elias Canetti: “Numa cidade como Salzburg, as pessoas são receptivas aos escritores”. Mas o que faz de um escritor um escritor? Raduan Nassar escreveu um ou dois livros e abandonou a literatura. Tornou-se canônico. E há escritores que permanecem vivos mais por sua atuação na mídia do que por suas criações. Tornam-se marketing.
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Planejou durante muitos anos uma trajetória a ser construída com a publicação regular, contínua de seus projetos de escrita. A vida acadêmica e o excesso de trabalho o conduziram a outra trilha. Depois de publicar um primeiro livro de ensaios em 1995 e de voltar em 2002 com um estudo sobre um importante crítico literário, não conseguiu dar continuidade a uma trajetória que apenas se esboçara. Passaram-se, desde então, dez anos, gastos com a inserção na vida acadêmica, as aulas na graduação e na pós-graduação, o redirecionamento de pesquisas e de publicações, a orientação de alunos, a gestão, as guerras, a infâmia, os aborrecimentos. É assim que chega aos cinqüenta anos: como um escrevente; alguém que usa a palavra como um meio, um instrumento.
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Eis um trecho de Barthes que não se cansa de repetir: “os escreventes são homens transitivos: eles colocam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra é apenas um meio; para eles, a palavra suporta um fazer, ela não o constitui. Eis, pois, a linguagem reduzida à natureza de um instrumento de comunicação, de um veículo do ‘pensamento’. Mesmo se o escrevente concede alguma atenção à escritura, esse cuidado nunca é ontológico: não é preocupação”. Para o escrevente, ao contrário, o ato da escrita não é intransitivo. Sua escritura está sujeita a demandas, vindas do mercado, da academia, das instituições.
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“Não vivo do que escrevo, mas vivo para escrever, afirma o escritor Sinval Medina, que acaba de lançar, sem qualquer alarde o belíssimo O cavaleiro da terra de ninguém, uma biografia romanceada do sertanista e rei dos tropeiros Cristóvão Pereira de Abreu. Uma narrativa fascinante que, apesar dos arcaísmos de linguagem, prende o leitor do início ao fim. Mas voltemos à frase de Sinval, pois ela demarca seu lugar de fala. Eis um escritor que escolhe seus temas, constrói seu estilo e ordena suas narrativas sem transigir com o mercado, com a mídia, com a academia. Isso talvez explique em parte sua pouca visibilidade no conjunto da literatura atual, em que as estratégias midiáticas garantem um lugar nesse perverso regime de visibilidade. Mas Sinval Medina é um escritor cuja produção apresenta regularidade, desde o ano de 1980, quando publicou seu primeiro romance, Liberdade condicional. Não vive do que escreve, mas vive para escrever. Eis um escritor no sentido pleno da palavra, e que não sofre do mal de Montano.
M.S.V.

O escrevente aos cinqüenta (a maldição de Montano)


Abre uma página de O mal de Montano, de Henrique Vila-Matas. Seus olhos passeiam pelas obsessões literárias do escritor catalão, mas seu pensamento se perde no quarto escuro da memória, este “baú de espantos” em que se desenha o malogro existencial e material de seus projetos de escrita. “O primeiro malogro está ligado à tardividade de minha formação, e que me constitui enquanto ser”, recorda. O segundo malogro é mais palpável: diz respeito às condições materiais da vida. Obrigado a ganhar o sustento, primeiro no jornalismo, depois na sala de aula, seus projetos de escrita sempre estiveram submetidos ao aspecto instrumental dessas atividades. “Haverá tempo?”, pergunta.
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Retorna a esse livro que é em tudo um incômodo, a começar pelo título: Crítica e verdade, de Roland Barthes. Este pequeno volume, que comprou quando tinha 21 anos, sempre exerceu sobre ele um fascínio e uma resistência à leitura. Folheia o livro e constata que há vários trechos sublinhados, marcas de leitura que indicam que já se perdeu por aquelas páginas. E há também a memória de leitura, e por ela comprova que já leu certos artigos, como o seminal “Escritores e escreventes”, mas desconfia que jamais tenha conseguido terminar a leitura de todos esses ensaios. Crítica e verdade poderão caminhar juntas?
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Gastou a juventude buscando o que? “Os livros não vieram; ficaram dentro de mim, como projeto de filhos abortados”, repete para si mesmo. Aqueles ensaios sobre literatura e cultura também não foram escritos. Sempre o trabalho, sempre a busca da sobrevivência. Olha-se ao espelho e o que vê é um acadêmico, imerso num laborioso e angustiante trabalho de Sísifo. “Onde ficou o desenvolvimento da carreira autoral? É a maldição de Montano.”
M.S.V.

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