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O escritor colombiano Gabriel García Márquez |
Foi
no verão de 1980 que li pela primeira vez Cem
anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Naquela época, vivia acossado
por uma crise existencial provocada pelo simples fato de ter 17 anos e não vislumbrar
sentido algum para a vida. É claro que esses elementos sozinhos não provocam
uma crise: foi preciso uma pitada de literatura para potencializar os humores,
o que ocorreu durante e depois da leitura de A Náusea, o romance filosófico de Jean Paul Sartre. O remédio para
a crise veio com a literatura de García Márquez, que então descobria.
Ainda
hoje lembro o estranhamento e o fascínio provocados já nas primeiras páginas
pelo mundo mágico de Macondo, a pequena aldeia feita de casas de barro e
taquara onde viviam personagens inacreditáveis, e cujos nomes se repetiam, como
os Aurelianos e os Josés Arcadios.
Poucas
obras literárias são tão ficcionais quanto a de García Márquez. Sua mente foi
capaz de criar um mundo extraordinariamente mágico e inverossímil do ponto de
vista do realismo, mas que nos parece assustadoramente real. Por isso sua obra
passou a ser classificada como “realismo mágico”. É mais do que isso: talvez
ele seja mesmo o Miguel de Cervantes do século 20.
Pois
o inacreditável mundo dos Buendía retorna agora com a morte do escritor
colombiano, ocorrida na última quinta-feira, no México. Um retorno que não
deixa de ser fantástico, com o episódio da disputa pelas cinzas do escritor
protagonizado pelas autoridades de Aracataca, onde ele nasceu, Barranquilla,
onde fez sua carreira, e a capital mexicana, onde vivia há muitos anos. Em
Aracataca, parece que ocorreu até um funeral sem a presença do morto. Ainda bem
que ele pediu para ser cremado, pois do contrário seu corpo se revestiria de uma
roupagem mística, como o que ocorreu com Evita Perón na Argentina.
García
Márquez morreu na quinta-feira santa, e foi numa quinta-feira santa que Úrsula,
a matriarca de Cem anos de solidão,
amanheceu morta, depois de ter vivido por mais de cem anos. Espinha dorsal do
romance, foi graças ao seu pulso firme, à lucidez e à sua longevidade que a
estirpe dos Buendía foi preservada.
Ursula
morreu na quinta-feira santa, depois de ter passado dois dias “numa oração
interminável, atropelada, profunda, (...) numa barafunda de súplicas a Deus e
de conselhos práticos para que as formigas ruivas não derrubassem a casa, para
que nunca deixassem apagar a lâmpada diante do retrato de Remédios e para que
cuidassem de que nenhum Buendía viesse a casar com alguém do mesmo sangue,
porque os filhos nasciam com rabo de porco”. (Cem anos de solidão, Ed. Record, trad. Eliane Zagury, 37ª. ed., p.
326-327).
Para
entrar no mundo ficcional de García Márquez, é preciso permitir que nossa
sensibilidade deixe de funcionar no registro do documental, do factual e do
teórico e se abra para o fascinante mundo da fabulação e do imaginário.
Foi
essa a descoberta que fiz naquele distante ano em que, naufragado em perguntas
sem respostas, deixei-me levar pela incrível e triste história do coronel
Aureliano Buendía e seus descendentes. Mas quando se fecha a última página de
um romance de García Márquez, a resposta está diante de nós, límpida: a ficção
é um remédio para a alma.
M.S.V.