segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Sebald, o colecionador de imagens


O escritor W. G. Sebald (1944-2001) transita entre os gêneros. Em Austerlitz (Companhia das Letras, trad. de José Marcos Macedo), por exemplo, a narrativa é construída a partir de passagens memorialísticas, relatos de viagem e dados históricos.

O resultado é uma prosa que tende mais para o ensaístico do que para o ficcional, e que lembra em alguns momentos o francês Marcel Proust e sua obra-prima Em busca do tempo perdido. Lembra também Cláudio Magris e o seu Danúbio. Seleciono a seguir dois belos trechos de uma leitura em andamento.

“Penso como é pouco o que logramos conservar na memória, como tudo cai constantemente no esquecimento com cada vida que se extingue, como o mundo por assim dizer se esvazia por si mesmo, na medida em que as histórias ligadas a inúmeros lugares e objetos por si sós incapazes de recordação não são ouvidas, não são anotadas nem transmitidas por ninguém (...)” [Pág. 28)

“No trabalho de fotógrafo, sempre me encantou o instante em que as sombras da realidade parecem surgir do nada sobre o papel em exposição, tal como recordações, disse Austerlitz, que nos ocorrem no meio da noite e que tornam a escurecer rapidamente caso se tente agarrá-las, à maneira de uma prova fotográfica deixada muito tempo no banho de revelação.” [Pág. 80]
M.S.V.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Auerbach revisitado

Figura central da crítica literária no século 20, o alemão Erich Auerbach (1852-1957) teve aspectos de sua obra analisada ontem durante o Seminário Internacional Rumos Literatura – Crítica Literária, no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo. Um dos palestrantes, o professor da City University, de Nova York, Martin Elsky, lembrou a formação cosmopolita de Auerbach que o tornava capaz de compreender as outras culturas, ainda que sob uma visão ocidental. Sua estratégia de leitura, reiterou o estudioso, baseava-se na suspensão voluntária da descrença por parte do intérprete, derivando disso sua extraordinária visão da obra de Dante, por exemplo. “Ele resolveu o problema da mimesis de uma maneira cristã”, disse.

Já o professor de literaturas românicas da Universidade Bergische, em Wuppertal, Alemanha, Earl Jeffrey Richards, destacou a importância do conceito de Europa na cosmovisão de Auerbach e seu empenho em estabelecer interfaces entre as culturas alta e baixa. Ele explicou que, para o crítico alemão, ser um romanista significava, sobretudo, ultrapassar a questão do germanismo.

O terceiro especialista presene ao Seminário de ontem foi o professor de Sociologia da USP Leopoldo Waizbort, para quem o problema central da abordagem de Auerbach está na busca do caráter intrinsecamente histórico da condição humana. “A literatura exprime o modo como os homens se vêem a si mesmos e suas transformações”, destacou.

Por fim, destaco a observação do curador do Projeto Rumos Literatura, o professor de teoria literária da USP, Samuel Titan Jr, que lembrou que Auerbach passou à posteridade como não mais do que um “bom leitor”.

Nm momento em que a crítica especializada abandonou o contato com o público e em que o uso do jargão acadêmico e o rebuscamento conceitual tomam o lugar da sensibilidade, é muito oportuno revisitar a obra de um crítico que foi ao mesmo tempo agudo nas análises e fino estilista. Afinal, não se pode ser um bom leitor de literatura sem o elemento da sensibilidade. E isso Auerbach tinha de sobra.
M.S.V.

domingo, 14 de dezembro de 2008

A História da Literatura Ocidental continua distante dos leitores

A nova edição da História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux, teria tudo para ser um dos destaques editoriais de 2008, não fossem dois detalhes. A obra não está nas livrarias, já que as vendas são feitas exclusivamente pelo site do Senado Federal, e apenas dois meses após o lançamento, o mesmo site informa que o livro está esgotado. Ou seja: o leitor continuará distante de uma obra de referência fundamental sobre o conjunto das literaturas do Ocidente, e que há muito estava esgotada.

Apesar disso, não se pode deixar de louvar a iniciativa do atual vice-presidente do Conselho Editorial das Edições do Senado Federal, Joaquim Campelo Marques, responsável por esta reedição da História da Literatura Ocidental. É preciso também dizer que este “lançamento” é a terceira edição de uma obra que, durante quase uma década, consumiu muito das energias físicas e emocionais de seu autor, o crítico literário e ensaísta Otto Maria Carpeaux.

Creio que nenhum outro livro deu tanta dor de cabeça ao crítico quanto este. Contratado pela Casa do Estudante do Brasil para escrever a obra, Carpeaux finalizou os últimos capítulos em novembro de 1945. Entregou ao editor cerca de quatro mil páginas datilografadas e criteriosamente documentadas. Mas os originais ficaram parados, pois a Casa do Estudante do Brasil, na época um órgão do Ministério da Educação, não possuía recursos para mandar editar a obra de Carpeaux. O contrato com o editor estipulava uma multa pesada em caso de desistência do autor, e isso tornou inviável a publicação da obra por outra casa editorial.

Quase dois anos depois, Carpeaux ainda vivia esse impasse. Em carta a Gilberto Freyre, de 31 de março de 1947, ele se queixa do editor, um tal Arquimedes, que permanecia irredutível.

“Esgotei-me com esse trabalho, entregando os últimos capítulos em novembro de 1945. Não demorou a revelação desagradável: a C.E.B. é financeiramente incapaz de editar a obra. Naquele tempo, vários editores quiseram entrar no negócio, mas nosso amigo Arquimedes, possesso de ambição, não me largou, insistindo no contrato que não determina prazo de edição e me impõe no caso da rescisão da minha parte uma forte indenização”, escreve Carpeaux.

E assim foi. A obra somente seria publicada entre os anos 1959 e 1966, e pelas edições O Cruzeiro, dirigida por Herberto Sales. Mas as agruras de Carpeaux com este livro não pararam. Com tiragens imprecisas e diversos erros tipográficos, esta primeira edição foi revista e ampliada pelo crítico nos anos seguintes, para ser editada pela pequena Alhambra, do mesmo Joaquim Campelo Marques.

Mas, se esta pequena tiragem da editora do Senado frustrou as expectativas do público leitor interessado na prosa límpida e erudita de Carpeaux, em breve uma nova edição desta obra deverá chegar às livrarias. A editora Topbooks prepara o lançamento da quarta edição da História da Literatura Ocidental como parte das Obras Completas do autor, das quais já saíram dois volumes.

Tamanha incidência talvez reflita um renascimento do interesse pela obra daquele que figura como um dos mais importantes críticos do país e contribui para reavaliar o lugar de uma obra de dimensões enciclopédicas como esta, e sua importância no processo de formação do leitor e do próprio campo literário do país.
M.S.V.

sábado, 29 de novembro de 2008

Apresentação de George Seiner


No castelo do Barba Azul é o nome do pequeno livro que tenho em minha mesa. Seu autor é o crítico George Steiner, que nasceu em Paris em 1929, mas foi educado na Inglaterra e nos Estados Unidos. Três línguas maternas acompanham esse filho de Babel: o francês, o inglês e o alemão. De seus anos de formação, Steiner ainda lembra das sessões semanais de leitura de Shakespeare, com uma professora escocesa contratada pelo pai, e de um especialista em letras clássicas que lhe dava lições de latim e grego.

Hoje com 79 anos, Steiner construiu ao longo de sua vida uma obra das mais significativas e férteis de nosso tempo. De seus mais de 15 livros, a maioria de ensaios, destaco esse pequeno volume de 1971, que inicia dialogando com as Notas para uma definição de cultura, de T.S. Eliot.

Para Steiner, é perturbador que um livro escrito durante a Segunda Guerra e publicado em 1948, e cujo tema é a crise da cultura ocidental, não contenha qualquer referência à barbárie e ao assassínio em massa dos campos de concentração, nem mesmo numa simples nota de rodapé. “Apenas três anos depois dos acontecimentos, como foi possível escrever um livro sobre a cultura e não escrever nada?”, pergunta Steiner.

No castelo do Barba Azul, Steiner desenvolve uma crítica à cultura ocidental e teoriza sobre as possibilidades de se pensar aquilo que ele chama de pós-cultura, cujo ponto de partida está na investigação das origens do inumano e da crise de nosso tempo. Para isso, ele retorna ao século 19, mais precisamente à longa paz européia situada entre 1815 e 1915, período em que floresceu o “jardim imaginário da cultura liberal.

Este pequeno livro é a melhor porta de entrada para a obra daquele que considero o mais brilhante ensaísta das últimas décadas. Foi, aliás, com a leitura desta obra, seguida de uma breve apresentação da trajetória de George Steiner, que fechei o curso Jornalismo Cultural: conceitos, problemas e mediações, que ministrei nesse semestre na Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Unesp, em Bauru.
M.S.V.

sábado, 25 de outubro de 2008

O martelo


Simples, belo e forte esse poema de Manuel Bandeira.

As rodas rangem na curva
dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu
naufrágio
Os elementos mais
cotidianos.
O meu quarto resume o
passado em todas as casas
que habitei.
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de
pomba.
Sei que amanhã quando
acordar
Ouvirei o martelo do
ferreiro
Bater corajoso o seu
cântico de certezas.
(Manuel Bandeira, “Lira dos cinqüentanos”, 1940).
M.S.V.

domingo, 19 de outubro de 2008

O Dostoiévski de Joseph Frank

Este é sem dúvida o mais completo estudo crítico-biográfico que alguém já dedicou a um autor. Obra em cinco volumes, o "Dostoiévski, de Joseph Frank é um caso raro de persistência, dedicação e talento dedicados ao comentário crítico. É, sem dúvida, muito mais do que isso, mas hoje gostaria apenas de recolher breves trechos sobre o método de trabalho de Frank. Do prefácio a "Dostoiévski, as sementes da revolta", o primeiro volume, anoto os seguintes trechos:
"Aos poucos fui compreendendo que, para fazer justiça à minha concepção de Dostoiévski, teria de apresentá-lo no contexto de uma sólida reconstrução da vida sociocultural de sua época. (...) Meu interesse pela vida pessoal de Dostoiévski é, portanto, estritamente circunscrito. (...) apenas me aprofundo nos aspectos dessa experiência cotidiana que parecem ter alguma importância decisiva, ou seja, aspectos que ajudam a comreender melhor seus livros.
"Não me movo da vida para a obra, mas sigo a direção inversa".
"Detenho-me na observação do ambiente sociocultural em que ele viveu. Foi desse ambiente que ele extraiu as idéias e valores com os quais assimilou toda sosrte de experiências que lhe foi dado viver".

Ao contrário do que costuma ocorrer nas biografias convencionais, em que os incidentes pessoais e os detalhes da vida particular ganham ênfase, creio que uma análise dessa natureza precisa compreender não apenas o estilo, a trajetória, mas também os valores e a concepção de mundo presentes na obra de um autor. E isso não é fácil de ser obtido.
M.S.V.

sábado, 18 de outubro de 2008

Lendo com Pierre Menard

"No decurso de uma vida consagrada às letras...", escreve Borges num de seus artigos que compõem Outras inquisições, obra de 1952 que reúne artigos e resenhas publicados em revistas e jornais argentinos, entre 1936 e 1952.
Seja pelos temas, seja pelo olhar sobre as obras (estilo), penso que esta coletânea assemelha-se em muito com as demais seletas de contos publicadas pelo autor. Em Borges, parece e haver uma fusão de gêneros, embaralhando as fronteiras entre crítica e ficção.
M.S.V.

domingo, 5 de outubro de 2008

No centenário de Machado

A atividade crítica de Machado de Assis foi a um só tempo curta e duradoura. Foi curta se considerarmos a pequena quantidade de artigos de que se compõe e o escasso intervalo em que foi concebida, entre 1858 e 1879. Mas foi extremamente duradoura quanto às implicações provocadas na posteridade pelas questões e temas abordados.
No dia em que se comemora o centenário de nascimento de nosso escritor maior, invoco a face talvez menos conhecida de sua obra: a de crítico literário. Autor de textos críticos até hoje importantes, como Instinto de nacionalidade, O ideal do crítico ou O passado, o futuro e o presente da literatura brasileira, Machado demonstrou estar atento aos problemas literáriros de seu tempo. Assim, não hesitou, por exemplo, em criticar os solecismos da linguagem comum, que considerava um defeito grave, e a forte influência da língua francesa. Em relação ao teatro, chegou a minúcias como a proposta que estabelecia regras sobre os direitos de representação e também a criação de impostos sobre as traduções, pois via com preocupação a enorme quantidade de peças francesas encenadas no Brasil de então.
Mas o aspecto central a considerar hoje é a crítica ao localismo pitoresco e ao falso instinto de nacionalidade, elementos que o autor de Dom Casmurro identificou na literatura de seu tempo. Amparado no desejo de criar uma literatura mais independente dos modelos europeus, em 1873, Machado de Assis insta seus contemporâneos a repensar o legado estético do Arcadismo e o predomínio dos temas indianistas. Basílio da Gama e Santa Rita Durão são os principais objetos de crítica, pois não souberam se desligar da matriz árcade. “Admira-se-lhes o talento, mas não se lhes perdoa o cajado e a pastora”, escreve no artigo “Instinto de nacionalidade”. Para Machado de Assis, indianismo não era representativo da totalidade do universo ficcional brasileiro. Era, evidentemente, um legado reconhecido pelo crítico, mas não poderia continuar a ser a única fonte de inspiração. Volto ao tema.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...