terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Modesto balancete de uma viagem de pesquisa


Velhos bondes ainda estão em atividade
Amanhã é meu último dia em Viena.  Hoje, o sol saiu convicto, como poucas vezes vi nesses dois meses em que aqui fiquei.  Aproveitei para fazer algumas compras e, ao contrário do que imaginava, quando caminhava pela cidade, não senti nem tristeza, nem nostalgia. Não fiz passeios de despedida. Nesse período, aproveitei tudo o que pude – e dentro do que estava ao meu alcance. Trabalhei e vivi a cidade no seu cotidiano. Conheci a cultura, os hábitos, os falares, os humores, misturei-me à população em geral. Sei que descortinei apenas um fragmento da cultura desta cidade, em que a germanização, que lhe é própria, cada vez mais se alimenta do multiculturalismo.
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Vim para fazer uma pesquisa documental e tive mais trabalho do que imaginava. Esse tipo de pesquisa, de natureza empírica, tem sempre algo de imprevisível. Passei a maior parte do tempo pesquisando em bibliotecas, fuçando arquivos, consultando material bibliográfico, conversando com especialistas, selecionando fontes primárias e secundárias em coleções e acervos os mais diversos. O saldo é altamente positivo. Os resultados virão a público quando colocar o ponto final no meu estudo sobre os ensaios europeus de Otto Maria Carpeaux.
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Detalhe de um monumento em Heldenplatz
Uma das coisas mais extraordinárias desta cidade é o transporte público. Viena é muito bem servida de ônibus e antigos bondes que funcionam muito bem. O metrô atinge praticamente toda a área urbana de Viena. Nas estações e nos pontos de ônibus, painéis informam com precisão assustadora os minutos que faltam para a chegada do próximo veículo. O uso de bicicletas é comum, há ciclovias por todos os lugares e pontos em que se pode alugar uma delas. Outra coisa que chama atenção é a permissão para animais de estimação entrarem com seus donos no metrô e nos shoppings. Até em restaurante vi isso acontecer. Os cães de maior porte usam focinheiras. Ninguém se importa. Faz parte da rotina da cidade.
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Deixo Viena feliz por ter feito o que fiz, ou seja, pesquisei, estudei, escrevi, aprendi. Respirei 24 horas por dia o tema de minha pesquisa – os papéis de Otto Karpfen – que há tantos anos me mobiliza. Não posso deixar de agradecer a instituição à qual pertenço, a Unesp, pela possibilidade de realizar esse estágio de pesquisa. Os desafios e descobertas que aqui experimentei fazem parte daquilo que sou agora e do que farei daqui pra frente. O mesmo se junta ao outro. A identidade se constrói com a diferença. 
M.S.V.

domingo, 18 de dezembro de 2011

À espera do Natal e na neve

Centro de Viena em clima de Natal

Viena está em festa. Os jornais anunciam que nesta semana, impreterivelmente, a neve que já cobre as montanhas no Oeste dos Alpes, descerá o vale do Danúbio até a velha cidade dos Habsburgos. É só o que falta para o cenário natalino ficar completo, já que por todas as ruas por onde passo, as luzes de Natal dão o colorido típico ao consumismo desenfreado que contagia a todos nessa época do ano.

As comemorações do Natal aqui iniciam já em meados de novembro, com a montagem de dezenas de “feirinhas” nos principais pontos da cidade. São quiosques com artesanato típico, comidas e bebidas quentes, que ficam lotados à noite e nos finais de semana.

Aos sábados, na Mariahilfer Strasse, tradicional e chique rua de comércio – contrastando com a popular Favoriten Strasse, que é bem mais longe de Innerestadt – o trânsito precisa ser interrompido para dar escoamento à enorme massa de pessoas que se aglomera nas lojas e calçadas em busca de presentes ou mesmo de um simples passatempo.

Salzburg e Mozart
Como a neve não chegou, decidi ir ao encontro dela. Peguei o trem em Westbahnhof, a estação ferroviária que sai de Viena no sentido oeste, e fui rumo a Munique. Aos cinquenta minutos de viagem, a paisagem mudou de cor, com o branco da neve cobrindo boa parte da vegetação. O sofisticado trem que viaja a 100 km/hora diminuiu sensivelmente a velocidade quando começou a subir em direção a Salzburg. Três horas depois, com neve por todos os lados, adiei o sonho de conhecer a Alemanha e desci na cidade de Mozart.

Acima dos prédios, vê-se parte do Castelo Mirabelli, em Salzburg.
Salzburg tem um ar típico de cidadezinha do interior e a regra número um para curtir o local é esquecer Viena, com seus palácios, praças, museus, igrejas etc. E o cosmopolitismo, que é sua marca registrada. 

Em Salzburg, nada lembra a grandiosidade barroca ou a sofisticada indústria do turismo que existe em Viena. Em pouco mais de quatro horas percorri o centro da cidade. Por fim, constata-se que a imagem de Mozart é explorada de todas as maneiras, de bibelôs a bolsas, passando por chocolates e guloseimas. 

Admito que fiquei um pouco decepcionado. Não se pode conhecer Salzburg depois de Viena. Sei que a comparação é injusta, mas é inevitável.
M.S.V. 

domingo, 11 de dezembro de 2011

De estrangeiros e de moradias: algumas impressões

Mariahilfer Strasse: padrão arquitetônico se repete pela cidade
O que é ser estrangeiro? É ser reconhecido pelo sotaque ou pela pronúncia. É ser classificado com um simples olhar pelo tipo físico ou pela cor da pele. Ou então pelo modo como se ganha a vida, ou seja, pelo trabalho, e pelo círculo de amizades, pelos hábitos incorporados. Diante dessa realidade, o conceito de cidadania não consegue dar conta. O sujeito pode ter direitos iguais, mas continua sendo um estrangeiro aos olhos dos nativos de um determinado local.
Pensei nisso após escutar a história de Draggo, um sérvio que mora há 16 anos em Viena. Fala alemão com um levíssimo sotaque eslavo. Deixou Belgrado com os pais e irmãos em 1995 para tentar a vida em Viena. Não voltou mais. Como ele, a quase totalidade dos empregados do hotel em que estou é de estrangeiros que chegam aqui e vão aprendendo o idioma no dia a dia, mas não têm nem terão condições de conseguir um emprego melhor. Percebo que a inclusão num determinado meio começa pelo uso da língua. Esta competência gera distinção e pertencimento. Se isso não ocorre, nos sentimos excluídos. Como em todas as grandes cidades européias, em Viena os estrangeiros executam funções destinadas aos que tem baixa escolaridade. “Os austríacos trabalham nos escritórios, na polícia, nos serviços públicos”, explica Draggo.
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Caminhando hoje de manhã pelas redondezas do hotel em que estou hospedado, fiquei observando que há muitos prédios velhos, necessitando de reforma urgente. Tenho visto também que todos os edifícios da cidade seguem o mesmo padrão arquitetônico. Vistos da calçada, são retangulares, com janelas enormes e possuem no máximo quatro andares. Pode-se contar nos dedos os edifícios construídos fora desse modelo. Vi alguns em áreas mais afastadas, acima do Danúbio, numa região de pouca densidade populacional.
Edifícios são antigos e amplos 
Creio que os moradores se identificam tanto com essa arquitetura -- os prédios devem ter uns 80 anos, no mínimo --, que recusam seguir outro padrão. Deve haver legislação impedindo tais mudanças, mas é inegável que a permanência no tempo desse modelo arquitetônico é reflexo de um apego à tradição, que remonta ao século 19, quando a cidade ganhou dimensões propriamente modernas, com a Viena da Ringstrasse. Além do mais, são edifícios com espaços internos amplos, bem diferentes dos nossos minúsculos apartamentos no Brasil. Tudo isso contribui para um sentimento de identificação com a tradição e de recusa à mudança.
M.S.V.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Espetáculo de música sacra na Catedral

Catedral de Santo Estéfano, em Viena (Fonte: Wikipedia)

O novo filme de Nanni Moretti, Habemus Papam, está em cartaz nos cinemas aqui. Em entrevista ao Wiener Zeitung ontem, o diretor explica que não quis fazer nenhuma crítica ao poder do Vaticano, nem abordar assuntos polêmicos como os casos de pedofilia ou as finanças da igreja. “Não me queixo da Igreja nesse filme”, declarou Moretti ao jornal. Sua preocupação foi, sobretudo, contar o processo de escolha de um Papa, o Conclave, a partir de um ângulo psicanalítico.
O cinema já produziu muitos filmes sobre a Igreja e o Vaticano e não é esse o assunto que quero abordar aqui. O filme de Moretti me fez refletir sobre a antiga e sólida relação que a Áustria mantém com o catolicismo, desde os tempos do império austro-húngaro.
Dia 08 foi feriado católico aqui, chamado de Imaculada Conceição (Maria Empfangnis, no original). A Catedral de Santo Estevão, (Spephansdom), que é a igreja matriz da Arquidiocese da Áustria, estava apinhada de gente para a Missa das 17 horas. Como estou empenhado em conhecer a cultura dessa cidade e desse país sob vários aspectos, o religioso não poderia ficar de fora.
E como não se conhece a Áustria sem levar em conta seu longo e pesado passado religioso, lá estava eu na Catedral. Para minha surpresa, o que assisti foi quase um concerto de música sacra. Não é como no Brasil, em que a mistura étnica produziu uma religiosidade mitigada. Aqui não: as missas são rigorosamente concebidas como se fossem um concerto. 
Assisti como observador e admito que fiquei encantado com a música, com o tom laudatório dos cânticos entoados pelo Coro e pelo solista. Música de Igreja, como nos tempos do Barroco. Apenas por um breve momento o público de fiéis (e de não fieis, como eu) é convidado a cantar junto. Fiquei apenas observando o espetáculo e a simbologia dessa prática religiosa que alimenta a fé de milhões nesse país profundamente católico.
M.S.V.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Isto também é Viena


Em minhas caminhadas por Viena, encontro algumas imagens que, embora nada tenham de excepcionais, revelam aquele lado que toda cidade tem, mas que os cartões postais costumam deixar de fora. Ruas estreitas, longe do burburinho consumista dos turistas, pichações na parede.
Deparei-me com essas imagens ontem, a caminho do Arquivo da Universidade de Viena, que fica num prédio muito antigo, longe do campus principal, que fica na parte nobre da cidade. Uma das mais antigas da Europa, a Universidade de Viena foi fundada em 1365 e, hoje, tem 88 mil alunos. 
Nessa parte, já próximo do Rio Danúbio, não há turistas e pode-se ver os vestígios desta velha cidade européia. As fotos, de amador, não tem nenhuma pretensão, a não ser a de revelar um pouco desse lado desconhecido da cidade, que descubro no meu cotidiano aqui.
M.S.V.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Itinerário afetivo de uma pesquisa

Prédio da Biblioteca Nacional Austríaca, na parte central do Hofburg

Viena. Jamais me esquecerei desses dias em Viena, em que pesquiso os papéis de Otto Karpfen. Já são muitas as boas e fortes lembranças desse período, mas as bibliotecas que conheci aqui merecem uma atenção à parte. Como faço uma pesquisa documental, tenho ido a várias instituições, museus e arquivos da cidade. Em todos os lugares, seja em instituições públicas ou particulares, tenho sido muito bem atendido. A qualidade dos serviços à disposição do estudioso e do pesquisador é impressionante.
Mas penso que nenhum outro local me encantou tanto quanto a Österreichische Nationalbibliothek, a Biblioteca Nacional Austríaca. Localizada em Heldenplatz – o encantador e enigmático Heldenplatz, sobre o qual ainda escreverei --, a ONB é o lugar ideal para se ler, estudar e pesquisar. Não apenas pelo acervo, cujos números desconheço, mas principalmente pelo ambiente. E uma biblioteca sem ambiente afasta os leitores.
Fachada do Salão Barroco, biblioteca
histórica construída em 1723
Está sempre cheia de estudantes de todas as idades, mas há muitos jovens, e confesso que nunca vi tantos estudando ao mesmo tempo. Na enorme Sala de Leitura, todos ficam em suas mesas, com luzes individuais e cadeiras confortáveis, com seus cadernos e notebooks, estudando para provas, fazendo tarefas. Enfim, um ambiente tão cheio de vida que nem parece uma biblioteca. Sempre tive aversão a bibliotecas vazias, que dão tédio e tiram a vontade de estudar. Na ONB isso não existe. Não sei explicar. Talvez sejam apenas impressões de estrangeiro. Mas há várias semanas que freqüento o local e a cena é a mesma.
Quando saio, por volta das 20 horas (o que já é noite alta, pois desde meados de novembro tem escurecido às 16 horas), e atravesso a enorme praça de Heldenplatz, com as luzes do Hofburg todas acesas, tenho a sensação de que jamais esquecerei esse cenário. Nem a temperatura próxima de zero é capaz de esfriar a emoção que sinto quando deixo esse local tão cheio de significado, tão prenhe de história. Foi aqui, por exemplo, que Hitler, em 15 de março de 1938, fez o discurso em que anunciou a anexação da Áustria pela Alemanha.
A Biblioteca ocupa posição central no imenso prédio que compõe o Hofburg e isso também me parece significativo do apreço que este país tem pela cultura, pelos livros, pelos seus documentos, enfim, pelos seus estudantes. Tenho observado que a Biblioteca talvez seja o único local turístico da cidade em que os turistas não são maioria, o que mostra que o lugar é frequentado pelos moradores. E, é claro, por estrangeiros em busca de conhecimento.
M.S.V.

domingo, 27 de novembro de 2011

Poesia da gramática e do sabor

Viena. Meu jornal de leitura diária aqui é o Wiener Zeitung (“Vina tzaitung”, como me ensinou insistentemente a senhora da banca da esquina), um standard diferente dos nossos, pois tem mais largura e menos comprimento. A edição deste fim de semana tem 48 páginas divididas em quatro cadernos e esta estrutura se repete nos demais dias. O jornal é sóbrio e tem um bom equilíbrio entre texto e imagem. Desde o início me chamou atenção na banca, por destoar de tablóides populares como Kronen Zeitung e Österreich, ou o Heute, distribuído gratuitamente por toda a cidade.

Os vienenses com quem tenho contato diário vêem meu esforço para aprender a pronúncia correta de palavras e expressões e me ensinam, com muito boa vontade. Mas observo que nem todos tem disposição para dominar com fluência o idioma da cidade em que moram.
Viena é hoje uma cidade com muitos imigrantes, vindos de continentes como Ásia e África. No metrô, vejo vários desses imigrantes falando alto ao celular, no seu idioma materno, indiferentes a quem está ao lado e sem se incomodar com o fato de tornarem pública sua condição de estrangeiros. Estão aqui para “ganhar a vida”, mas recusam a assimilação, a aculturação. Observo isso com imigrantes turcos, indianos e africanos.
Nas ruas e shoppings, há muitos restaurantes asiáticos. Turcos oferecem seus kebaps, pratos feitos com carne desfiada, arroz, salada, páprica e muitas fatias de pão. Os chineses e japoneses montam seus tradicionais bufês do tipo “coma tudo o que puder”. Estão sempre lotados; são baratos. Nesses restaurantes populares, comida asiática é sinônimo de comida barata. Na primeira semana fui vítima dessa culinária asiática feita para estrangeiros com muita fome.
Logo, porém, percebi que aquilo não era Viena. Foi então que comecei a frequentar os restaurantes administrados por vienenses. Outro cardápio, outro ambiente, outro serviço, outra clientela. E o mais surpreendente: os preços não são tão diferentes daqueles.
Como entender então essa separação? Cinco semanas é pouco para conhecer a resposta, mas arrisco um palpite: pode estar na predisposição para conhecer a cultura local, para se deixar influenciar pelo ambiente de Viena. E isso começa pela poesia da gramática e continua na gramática do sabor.
M.S.V.

sábado, 19 de novembro de 2011

Carpeaux, Canetti e o velho Instituto de Química de Viena

O Instituto de Química da Wahringerstrasse, em Viena, onde
Carpeaux e Canetti estudaram na década de 1920 
Viena. Em busca de rastros e pistas que me levem a reconstituir a trajetória do crítico e jornalista Otto Maria Carpeaux (1900-1978), conhecido aqui em Viena como Dr. Otto Karpfen, cheguei à esquina da Wahringerstrasse com a Turkengasse. 
É nesse endereço que está localizado o Instituto de Química da Universidade de Viena, onde o jovem Otto Karpfen estudou entre os anos 1920 e 1925.
Em suas memórias, o escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994) relembra os tempos em que estudou no mesmo Instituto da Wahringerstrasse, e descreve-o como “o velho instituto enfumaçado, situado no começo da Wahringerstrasse” (Uma luz em meu ouvido, Companhia das Letras, trad. Kurt Jahn). Não há dúvida, é este o prédio, pensei, parado na calçada da Wahringer, numa fria tarde de inverno.
Canetti viveu muitos anos em Viena e foi nessa cidade que conheceu Veza, com quem viveria por toda a vida. Veza era uma mulher liberal, extremamente culta e que se recusava a seguir os padrões socialmente estabelecidos para as mulheres. Nos anos 1920, frequentava os círculos literários de Viena e as famosas conferências públicas de Karl Kraus, que por essa época era um figura central na cidade, e que se tornaria um dos jornalistas mais importantes da Europa no século 20.
Carpeaux e Canetti estudaram Química no mesmo instituto e por pouco não foram colegas. Cinco anos mais jovem do que Carpeaux, Canetti formou-se em 1929, quatro anos depois do jornalista austríaco-brasileiro. Creio que não iria errar por muito se dissesse que ambos se “conheciam” dos corredores do velho instituto, onde hoje funciona o curso de Medicina Genética da Universidade de Viena. Talvez até tenham conversado.
Não conheço nenhum artigo de Carpeaux sobre Canetti, mas a trajetória de ambos tem muitas coincidências. Além da origem judaica, da juventude vivida em Viena e da mesma profissão de Químico – que ambos jamais iriam exercer – os dois deixaram a cidade em 1938, quando Hitler entrou triunfante na ex-capital do império austro-húngaro.
Canetti refugiou-se na Inglaterra e, depois da guerra, passou a viver na Suíça. Carpeaux, que abandonara formalmente o judaísmo em 1933, teve um destino bem diferente. Fugiu para a Holanda e, um ano depois, chegou ao Brasil.
Canetti tornou-se um dos principais escritores do século 20, premiado com o Nobel de Literatura em 1981. Carpeaux tomou um caminho sem volta: no Rio de Janeiro, deixou para trás não apenas seus pais, seus livros e sua amada pátria, mas também sua língua materna, pois passou a escrever em português. Poucas coisas podem ser tão avassaladoras para o ser quanto isso. Há os exemplos de Conrad e Nabokov com o inglês, mas eles fizeram uma opção. O caso de Carpeaux é diferente, pois ele não tinha escolha.
Carpeaux abandonou também uma promissora carreira de ensaísta e jornalista, que se abria para ele em Viena nos anos 1930. No Brasil, tornou-se um crítico extraordinário, que produziu artigos incansavelmente durante 35 anos para diversas publicações. Mas escrevia em português e estava do outro lado do Atlántico. Aqui em Viena ele praticamente não existe. Ou melhor, só existe até 1938. O idioma pode ser tanto uma abertura quanto um confinamento.
Nós, no Brasil, certamente ganhamos. Sua obra brasileira está aí para provar. Mas eu não tenho certeza quanto a ele, principalmente quando penso no talento e na dimensão que seus artigos e ensaios assumiam na década de 1930. E agora que descubro outros mais aqui em Viena, fico a pensar que, se tivesse ele tido condições de permanecer na Europa, sua obra teria uma dimensão mais profunda do que a que teve no Brasil, que traz as marcas da mediação cultural, do comentário, do trabalho de segunda ordem. Meu único conforto é pensar que se nós, no Brasil, ganhamos com sua inserção em nossa cultura literária, ele, ao cruzar o Atlântico em fuga desesperada, escapou da morte.
M.S.V.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

De turista a estrangeiro

Bicicletas para alugar na Maria Hilfer Strasse, Viena
        Viena. Depois de quase um mês vivendo o cotidiano de uma cidade, a condição de turista dá lugar à de estrangeiro. Isso possibilita um olhar ao mesmo tempo menos apressado e mais atento a detalhes que o cidadão que vive a rotina do dia-a-dia costuma ignorar. Como, por exemplo, o sujeito que estende o copo pedindo umas moedas na escada da estação do metrô Burgasse, onde passo duas vezes todos os dias.
        É essa mesma condição que me permite escutar nas ruas e no metrô os diferentes sotaques que, em alguns casos, imagino (apenas imagino, embora consiga perceber que não falam como o nativo de Viena), correspondam a dialetos de regiões como o Tirol, próximo da Itália, a Caríntia, mais ao Sul, ou a Upper Áustria, ao norte, que faz fronteira com a República Tcheca.
        Esses falares que escuto diariamente sem entender não impedem a comunicação, pois a norma culta do idioma alemão serve de parâmetro e dá a um estrangeiro com escasso vocabulário – como é o meu caso -- condições de se fazer entender. Há, de fato, muitos estrangeiros em Viena. Não estou falando dos turistas que lotam Innerestadt – como é chamado o centro histórico. Afinal, esta é uma cidade que desenvolveu, como poucas, a indústria do turismo.
Hofburg, em Innerestadt, Viena: turismo e história
       Refiro-me à grande quantidade de imigrantes oriundos da Ásia, da região dos Bálcãs e da África. Dados oficiais indicam que 20% da população de Viena, que hoje tem 1.700.000 habitantes, é formada por estrangeiros. Ou seja, há cerca de 340 000 pessoas de outros países vivendo na capital austrícaca.
        Os vienenses parecem não se incomodar com essa “invasão”. Até onde pude ver – e essa é uma visão bastante parcial – os imigrantes acabam suprindo a necessidade de mão-de-obra para setores como lojas, restaurantes, mercados, hotéis etc. Mas a Viena de Innerestadt, dos cafés chiques, do Hofburg e seus caros souvenirs, das dezenas de Museus e das centenas de atrações culturais parece ser uma realidade muito distante de todos esses imigrantes que chegam a Viena em busca de um futuro melhor.
M.S.V.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Passeando pelo centro de Viena

Viena, 04/11/2011, 11h30. A capital da Áustria pode ser exemplo para muitas coisas, mas poucas são tão eloquentes quanto a relação que esta cidade estabelece com seu velho e histórico centro. Enquanto a imensa maioria das médias e grandes cidades assiste inerte, ou até estimula, uma expansão urbana que vai do centro para a periferia, deixando imensas áreas que já contam com infra-estrutura caminharem para a degradação, em Viena parece ocorrer um movimento contrário. Aqui o poder público valoriza, restaura e mantém o dinamismo de sua área central, chamada de Innere Stadt.
O centro de Viena é uma espécie de cidade dentro da cidade, circundada por grandes avenidas que formam um único anel. O círculo começa no canal do Danúbio, segue pelas avenidas Shotternring, Karl Lueger Ring, Karl Renner Ring, Burgring, Opernring, Kartner Ring, Schubertstrasse Park Ring e Stuben Ring, para terminar novamente no Danúbio.
Esta fisionomia urbana tem origem no século 19, quando uma ampla reforma alterou significativamente a paisagem da cidade, transformando-se numa síntese dos valores e da cultura da alta classe média liberal vienense. É a Viena da Ringstrasse, cujos frutos ecoam ainda hoje quando se caminha por Innere Stadt.
É no interior desse anel que estão localizadas as dezenas de prédios monumentais que formam um magnífico conjunto arquitetônico, impossível de ser descrito em palavras. Lá estão os prédios do Parlamento, da Prefeitura (Rathaus), da Catedral de Viena, os dois gigantescos museus, o de História da Arte e o de História Natural, além do complexo do Hofburg. Tudo isso sem falar na Universidade, em outras igrejas e nos palácios, hoje transformados em hotéis, embaixadas, bancos, museus e mais museus.
Quando, numa fria tarde de sábado, caminhei pela primeira vez no meio desses monumentos, não pude conter a emoção, tal é a eloqüência desses símbolos, repletos de história e de cultura, e cuja imponência continua intacta graças ao contínuo trabalho de preservação do patrimônio e da memória da cidade.
M.S.V.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A língua em sua dimensão mais banal

Viena, 02/11/2011, 13h00. Já dizia Walter Benjamin que a linguagem não poderia ser definida por seu significado instrumental. Ao ressaltar o aspecto mágico e sua imediaticidade, o filósofo alemão buscava excluir esse viés utilitário da língua, para ele identificado com uma concepção burguesa da linguagem.

Ora, é exatamente essa dimensão instrumental, condenada por Benjamin, que estou vivenciando nesses dias aqui em Viena, em que me sinto completamente cercado pelo idioma alemão. No hotel, nas ruas, no shopping, nos restaurantes e nos cafés, e até mesmo no quarto, quando ligo o aparelho de TV, o idioma está por todos os lados, penetrando pelos ouvidos e pelos poros, como um vírus.

Confesso que, nos primeiros dias, senti-me acossado. Aos poucos, porém, passei a ficar à vontade com a situação. Afinal, essa viagem de pesquisa tem também esse objetivo: sanar as dificuldades de quem aprendeu o idioma depois dos 30 anos. Assim, minha única alternativa era procurar me comunicar em alemão, superando as limitações, insistindo muito e, principalmente, negando-me a usar o espanhol ou o inglês, idiomas muito utilizados em Viena. Tenho levado tão a sério esse propósito que, outro dia, no café da manhã, escutei a frase: “hoje tem salada de frutas...”. Refreei de imediato a saudade da língua materna e afastei-me rapidamente do casal que se servia no bufê, tudo para não iniciar uma conversa em português.

Não sei por quanto tempo conseguirei pôr em prática essa estratégia. Mas sei que a fase mais difícil com o idioma já passou. Afinal, desembarcar no aeroporto de uma cidade desconhecida, num país desconhecido, pedir um taxi, informar o local de destino, apresentar-me na recepção do hotel, pagar a hospedagem, contar o dinheiro e conferir o troco... Tudo isso resistindo ao convite constante para falar em espanhol ou inglês. Confesso que não tem sido fácil. Mas a cada uso “mal-bem” sucedido que faço do idioma, mais forças renovo nessa que parece ser uma eterna tarefa de Sísifo.

Essa atitude diária pode ser interpretada como um radicalismo de minha parte, ou até masoquismo. Na verdade, é apenas a reação de um brasileiro que estuda há muitos anos o alemão e que sempre se frustrou com os exercícios artificiais dos cursos de idioma. Mas que agora tem diante de si a oportunidade de conhecer a língua em sua dimensão mais banal, que é a de se fazer entender aos outros para garantir a sobrevivência diária.
M.S.V.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A caminho de Viena: primeiras impressões

 
Viena, 28/10/2011, 11h a.m. Cheguei, enfim. Depois de ter ficado atordoado com as dimensões e a complexidade de um Aeroporto como o Charles De Gaule, em Paris, onde permaneci por algumas horas, segui para Viena. Quando sobrevoei Paris, que já foi a capital do século XIX, mas que continua sendo uma capital da cultura, e avistei o Sena se contorcendo lá embaixo, desejei que o avião retornasse. Mas como? Há pelo menos dez anos que você sonha com Viena. E agora, que está há apenas duas horas do seu destino, deseja mudar os planos?

Recostei a cabeça na poltrona e deixei que a imagem dos Alpes (onde está localizada a Áustria) colocasse lentamente as coisas no lugar. Paris é realmente um fascínio, mas terá que esperar. Meu destino agora é a Europa Central, mais precisamente a capital do poderoso império austro-húngaro, que deixou de existir a partir do final da Primeira Guerra (1914-18), tema, aliás, de um dos livros do jornalista e ensaísta Otto Maria Karpfen (1900-1978), o autor cuja obra estudo há muitos anos e motivo principal desta viagem até Viena.

Nem o céu carregado de nuvens, nem o frio gélido dos Alpes foram capazes de diminuir meu deslumbramento quando entrei no centro de Viena, o chamado Innere Stadt. O motorista do taxi, Carlos, um espanhol que reside há onze anos em Viena – mas que conserva intacto o sotaque de seu país de orígem – estranhou que eu já conhecesse o nome de inúmeras ruas do Centro, já que era a primeira vez que estava em Viena. “Google Maps”, expliquei, com um sorriso de brasileiro.

Já era início de noite em Viena e as luzes, o trânsito lento dos carros, dos ônibus (elétricos e bondes, todos de cor vermelha) e das pessoas em suas pesadas roupas, desencadearam em mim um absoluto encantamento. Por todas as ruas que passava, a paisagem arquitetônica se repetia: prédios monumentais, construções de duzentos anos ou até mais, absolutamente conservados e adaptados à vida moderna. Janelas e portas enormes hermeticamente fechadas, para impedir a entrada do frio. Não há nada parecido com isso no Brasil e essa primeira imagem de Viena ficará para sempre em minha memória, como um cartão postal de alumbramentos, colecionado por um brasileiro em sua primeira viagem à Europa.
M.S.V.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Preparativos de viagem

Que livros levar numa viagem em que o trabalho solitário será uma constante? “Nem um livro em língua portuguesa”, penso de imediato. Desejo e ao mesmo tempo temo o isolamento linguístico. É para isso que também vou: dominar, compreender, agarrar (verstehen,greifen) este idioma que tanto me fascina.

Outra voz me aconselha a colocar na bagagem aqueles livros que, desde que me lembro, sempre funcionaram como um tipo muito particular de auto-ajuda: os parágrafos intermináveis de Marcel Proust e os poemas de Manuel Bandeira e Mario Quintana. E também aqueles ensaístas que jamais deixei de reler: George Steiner, Roberto Schwarz, Edward Said e Beatriz Sarlo. Como não levar na mala a ironia de Machado de Assis, que nos fortalece para a vida ou as iluminações (sempre à mão) de Walter Benjamin. Ou ainda a escrita fantástica de Borges, que prepara docemente a viagem noturna do sono.

Mas é em Quintana, leitura sempre noturna, que encontrei, nesta manhã de quinta-feira, o breve e belo Matinal, que me prepara para o dia:

“O tigre da manhã espreita pelas venezianas.
O vento fareja tudo.
Nos cais, os guindastes – domesticados dinossauros –
Erguem a carga do dia.”

O poema está em Baú de espantos, livro que Quintana publicou em 1986, quando já era conhecido em todo país. Imagino-o acordando num quarto do Hotel Majestik, na Rua da Praia, em Porto Alegre, onde morou durante muitos anos, que naquela época devia ainda ter janelas do tipo venezianas. Por entre elas, o poeta podia espreitar o dia, espalhando seu olhar até o cais do porto, situado um pouco mais à frente, onde avistava os enormes guindastes que descreve no poema. A manhã espreita, o vento fareja... Preparo minha viagem.
M.S.V.

domingo, 21 de agosto de 2011

O autor enquanto sujeito comum

O autor não é um herói da literatura, nem esta tem o poder de salvar o mundo. Ao contrário, o que o autor precisa fazer é livrar-se deste papel que lhe foi incutido pelo sistema de produção literária. Só assim será possível ter “uma consciência lúcida do mundo”. As palavras são do escritor chinês Gao Xingjian, cujo texto “Ideologia e literatura”, foi lido pelo escritor em evento sobre literatura na Itália, ocorrido em junho de 2011, e publicado no Suplemento Sabático, de O Estado de S. Paulo, em 8 de agosto último.

O tema abordado por Gao Xingjian, as relações entre política e a arte de escrever, talvez não tenha tanta relevância no Brasil, mas faz sentido naquelas sociedades não plenamente livres, como é o caso da China. Mesmo assim, são férteis suas reflexões sobre a função do autor na atualidade.

Romancista e dramaturgo chinês que há anos vive na França, Xingjian ganhou o Prêmio Nobel em 2000. No Brasil, os leitores podem conhecê-lo por meio de seu romance A montanha da alma (Alfaguara, R$ 69,90, 2007). Para ele, são duas as ameaças que pairam sobre aqueles que se dedicam à criação literária: o alinhamento político-ideológico e “os modismos e o gosto das massas gerados pelo mercado”. Escreve Xingjian: “Esse tipo de literatura que transcende a ideologia e a política e transcende o benefício prático consiste num testemunho das condições existenciais da humanidade e da natureza humana”.

Quando a voz do autor transforma-se na voz do povo ou da nação, desvia-se de sua real vocação, que é ser a expressão da individualidade, escreve Xingjian. Mas o que me chamou particularmente a atenção foi sua concepção de autor enquanto indivíduo comum, longo da imagem do gênio ou do ente inspirado eu paira acima dos mortais. Vejam o trecho a seguir, que me lembrou a concepção de literatura presente na obra de Roberto Bolaño, sobre a qual, aliás, já escrevi aqui mesmo.

“O autor não é a encarnação da verdade e da dignidade, e suas fraquezas e defeitos pessoais são de fato tão grandes quanto os das pessoais comuns; aquilo que o diferencia é simplesmente o fato de ele poder purificar-se com a escrita da literatura”.

Bolaño certamente concordaria com a sentença, com exceção da parte final, sobre a suposta purificação trazida pelo ato de escrever. Vejo uma pequena armadilha ideológica nessa expressão, eco talvez da civilização chinesa, à qual pertence o autor, e que sempre foi profundamente mística.
M.S.V.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

A modernidade na periferia do país

Estive em Porto Alegre há algumas semanas e aproveitei para voltar à Casa de Cultura Mário Quintana. Quem entra nesse velho e imponente prédio da Rua da Praia, no centro da cidade, onde um dia funcionou o Hotel Majestic, e que já foi morada do poeta durante muitos anos, sente que está diante de algo muito maior do que um centro cultural.

Nos tempos áureos do Hotel Majestic, Porto Alegre era cenário da modernidade, de uma vida literária que incluía autores, tradutores, mercado editorial e leitores. Mário Quintana foi um desses personagens, mas havia muitos outros talentos circulando por lá.

Quando entrei numa sala que remetia à obra de Érico Veríssimo, pude ver algumas fotografias daquele que até hoje figura como um dos maiores nomes da literatura brasileira. As imagens retratavam as diferentes fses da carreira do autor de O tempo e o vento.

Todos os ícones que traduzem a figura de um escritor estão nessas fotos: Érico escrevendo, em viagem, brincando com o filho, posando ao lado de gatos, Érico à frente de sua máquina de escrever. É impressionante como Érico tinha consciência de sua imagem enquanto escritor. Não apenas escrevia, mas passava a imagem pública de que era alguém que vivia como escritor. Se pensarmos que sua carreira se desenvolveu nos anos 1960-70, surpreende que, numa Porto Alegre absolutamente periférica (não vai aí nenhum juízo de valor, mas antes uma crítica aos pontos de vista geograficamente centrais) havia um escritor que vivia enquanto tal. E que não deixava de registrar sua vida de escritor em imagens.

O fato, por si só, é revelador de que o ambiente que o cercava era autenticamente literário. Numa possível história da vida literária em Porto Alegre na segunda metade do século 20, Érico Veríssimo será um capítulo à parte, assim como Mário Quintana, a Editora do Globo, o Suplemento Literário do Correio do Povo. Enfim, são indicadores da modernidade no Sul do país.
M.S.V.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

As leituras profissionais e a "inutilidade” da ficção

Outro dia postei um comentário sobre a impossibilidade de se ler, nos dias de hoje, um romance de 600 páginas. O motivo era o lançamento de Liberdade, o mais recente livro do americano Jonathan Franzen. Quem tem tempo hoje para enfrentar 600 páginas?, perguntava então naquele post. Quanto mais adentramos na vida adulta (com seus inevitáveis compromissos), menos contato temos com a leitura de ficção. Leituras profissionais e/ou técnicas não contam.

A constatação me incomodou, pois meu ganha-pão é o ensino e as paredes de minha casa estão repletas de livros. Estou cercado de obras teóricas, de referências, dicionários, publicações acadêmicas, que utilizo em minha profissão. Mas é a literatura, que sempre trazia comigo e que sempre fez parte de minha formação? Foi preciso uma campanha de marketing para me despertar dessa letargia profissional. O estopim foi justamente o romance Liberdade, de Franzen.

Na Livraria que mais frequento, a Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, era impossível não dar de cara com o romance de Franzen, tão forte era a campanha publicitária do livro, com exemplares empilhados em locais estratégicos, posters, anúncios e o ineviátel apelo: “mais de um milhão de exemplares vendidos”. Além, é claro, do comentário crítico do jornal The Guardian, transformado em slogan: “o livro do ano e do século”. Sempre que vejo um comentário crítico ser usado como propaganda de um livro, como neste caso, penso que Adorno tinha razão quando comparou os críticos a mercadores.

Mas eis que não resisti e comecei a ler Liberdade. A primeira sensação é de estranhamento com aquele mundinho pueril da classe média norte-americana. Aos poucos, porém, o leitor vai se envolvendo com os hábitos dos personagens, seus pensamentos, suas ações. A primeira dessas personagens a ser construída pela narrativa é Patty Berglund, a protagonista. A narrativa de Franzen é ágil e envolve o leitor. Quando me dei conta, já tinha lido quarenta páginas, numa sentada. Fui fisgado. Volto ao romance.
M.S.V.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Literatura no Paquistão: só para inglês ver

Há certas literaturas que não podem se dedicar exclusivamente à fabulação, ao imaginativo, já que precisam se ocupar com o real. Com isso, acabam por tornar-se mais um documento da realidade do que um monumento da criação poética e romanesca. Isto costuma ocorrer em sociedades fechadas, em que a liberdade de expressão não tem livre circulação. Logo, a literatura acaba por assumir um papel de tribuna, papel esse que, em condições nornais, seria desempenhado pelo jornalismo.

Isso fica mais evidente quando se examinam os caminhos do romance neste século 21. Leio no Suplemento Prosa & Verso, do jornal O Globo, entrevista da escritora paquistanesa Kamila Shamsie, que tem seu romance Sombras marcadas (Ed. Alfaguara) recém-lançado no país.

Nascida em Karachi, no Paquistão, em 1973, seu livro (o primeiro a ser lançado no Brasil) aborda as marcas deixadas nos sobreviventes pela tragédia nuclear de Nagasaki, ocorrida durante a Segunda Guerra. Há analogias com acontecimentos decorrentes dos atentados de 11 de setembro, quando o Paquistão, juntamente com o Afeganistão, passou ao primeiro plano dos conflitos internacionais e, pela entrevista da autora, é possível conhecer seus pontos de vista sobre a função da literatura. “O trabalho da ficção e o da reportagem são complementares, me baseei muito no trabalho de jornalistas para fazer esse romance”, afirma Kamila Shamsie.

Destaco o trecho final da entrevista, bastante revelador da situação da literatura no Paquistão e do pouco contato dos leitores com os escritores paquistaneses que, a exemplo de Shamsie, escrevem em inglês.

“Os romancistas de língua inglesa atingem uma percentagem muito pequena da população paquistanesa: o governo nunca tomou conhecimento de nós (até agora!). É diferente com os escritores em urdu e em outras línguas com um alcance mais amplo, que historicamente sofreram com prisões e ameaças. Hoje, os jornalistas são os mais atingidos pela violência.”

Impossível não concluir que Kamila Shamsie cumpriria melhor sua função pública de escritora paquistanesa se escrevesse em idiomas que estivessem mais ao alcance da população, e não em inglês. Sua literatura, supostamente de denúncia,  só interessará realmente aos paquistaneses. No Ocidente e no Brasil, onde seu romance acaba de chegar, terá apenas um sabor exótico, secundário.
M.S.V.

sábado, 21 de maio de 2011

Existem leitores para 600 páginas?

Na próxima semana chega às livrarias o novo romance de Jonathan Franzen (foto), Liberdade. São mais de 600 páginas. É claro que vem aclamado pela crítica (ela é parte do mercado) e credenciado pelo suposto sucesso junto aos leitores norte-americanos. Sérgio Augusto, em sua coluna do suplemento Sabático, de O Estado de S. Paulo, afirma que o “romance pode ser lido como um folhetim”. Duvido. Ainda existirão hoje leitores para 600 páginas? Quem se deixará levar por uma “história alegórica em torno de uma família do Meio Oeste norte-americano”?

O gênero romance tem uma longa tradição e sua longevidade esta associada à sua capacidade de renovação. Já tivemos Balzac e Tolstoi com seus calhamaços, suas sagas e painéis de época. E já tivemos Proust com seus parágrafos intermináveis. Agora ficamos sabendo que Franzen escreve ao estilo do século 19.

Lançado no ano passado, Liberdade cobre três décadas, conta a saga de uma família e aborda temas tãso atuais como a guerra do Iraque, a crise financeira de 2008 e até a campanha de Obama à presidência. Na ocasião, a apresentadora de TV Oprah Winfrey não poupou elogios ao livro, enquanto sua produção distribuía exemplares de Liberdade à platéia.  "Eu aposto que Freedom, de Jonathan Franzen, acabará sendo para vocês como é para mim: um dos melhores romances que vocês já leram", disse ela.

Ao explorar um contexto histórico recente, Franzen revela seu apego ao factual, que costuma transformar a ficção num artefato documental. Nossa época, aliás, tem um forte apego ao documental. Talvez seja essa a chave para ler o novo romance de Franzen. E de seu “aclamado” sucesso de público. Mas quem se habilita hoje, no Brasil, a enfrentar as 600 páginas de uma saga familiar? Num único volume? Cada vez mais prefiro as narrativas curtas, os enredos rarefeitos, os personagens esboçados.
M.S.V. 

domingo, 8 de maio de 2011

Especialização e cultura generalista


A crescente e inevitável especialização do conhecimento tem cada vez mais confinado a produção do saber na esfera acadêmica. Num mundo de especialistas, parece causa perdida insistir no interesse geral e na cultura geral. Principalmente por que essa ideia pode sucumbir com facilidade na simplificação operada pela grande mídia, sempe mais interessada no acontecimento e na audiência do que na problematização das questões.

Os efeitos da fragmentação do conhecimento e da lógica disciplinar que rege a vida acadêmica – e essa é uma tendência mundial – já são visíveis tanto na linguagem das ciências humanas e sociais, quanto no viés epistemológico que as inspira: o modelo de produção das ciências exatas. Nossas pesquisas hoje resultam em textos relatoriais, em que o estilo é (mal) visto como um resquício do ensaismo que um dia era a marca das humanidades.

A pergunta que precisa ser feita diante desse estágio do nosso conhecimento é a seguinte: é possível defender uma cultura generalista num mundo de especialistas? Penso que sim. E acredito também que essa discussão passa pela linguagem, pelo texto.
M.S.V.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Calvino e o “círculo do livro”


O escritor italiano Italo Calvino publicou Se um viajante numa noite de inverno em 1979. Já escrevi aqui que este é um romance sobre a escrita do romance. Fala de manuscritos perdidos, falsificações, editores, tradutores, estudiosos de literatura. Enfim, de todo aquele conjunto de agentes que compõe o campo literário.

O trecho selecionado a seguir parece antever a era da ficção amarrada com o merchandising. Até onde sei, o fenômeno não ocorreu com o romance, mas integra “naturalmente” a produção das novelas de TV.

A edição que possuo é do Círculo do Livro, editora que até a década de 1980 faturava alto com suas edições de best sellers vendidos por correspondência. Cheguei a comprar alguns livros por esse método, e ainda lembro que 99% do catálogo era de obras de auto-ajuda, romances açucarados e best sellers. As edições eram muito bem encadernadas e as capas coloridas, feitas para fisgar o leitor. 

Que essa obra de Calvino tenha sido publicada pelo Círculo do Livro é algo para o qual não tenho explicação. Escreve o italiano, a certa altura de seu meta-romance:

“Há alguns meses que Flannery entrou em crise; não escreve mais uma só linha; os numerosos romances que começou e pelos quais recebeu, de editores do mundo inteiro, adiantamentos em dinheiro que pressupunha financiamentos bancários internacionais, esses romances, que tinham contratos passados por intermédio de agências de publicidade internacionais, as quais já tinham especificado a marca das bebidas que tomariam as personagens, as localidades turísticas que frequentariam, quais seus modelos de alta costura, quais os fornecedores de mobiliário e de gadgets, esses romances estão incompletos, à mercê de uma crise espiritual tão inexplicável  quanto inesperada. Uma equipe de colaboradores secretos, especialistas na arte de imitar o estilo do mestre com todas as suas nuanças e maneirismos, mantém-se pronta a intervir para tapar os furos, arrematar e completar os textos redigidos pela metade, de tal modo que nenhum leitor possa distinguir entre as partes devidas à mão de um ou dos outros”. (Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno.  São Paulo, Círculo do Livro, s/d, p.116, trad. Margarida Salomão).
M.S.V.

domingo, 17 de abril de 2011

O primeiro parágrafo fisga o leitor


Sempre que estou numa livraria, em busca de um romance novo (ou antigo) para ler, me divirto lendo o primeiro parágrafo da história. Se o início de um romance me atrai, provavelmente vou continuar a lê-lo. Creio que todo escritor sabe que é preciso fisgar o leitor já nas primeiras linhas. Imagino uma antologia da literatura formada unicamente pelo primeiro parágrafo de romances, novelas e até contos. Transcrevo a seguir três inesquecíveis começos de histórias que li na juventude e que até hoje não cesso de reler.

“O Coronel destampou a lata do café e notou que apenas restava uma colherinha de pó. Tirou a panela do fogo, jogou no chão de barro batido a metade da água e raspou de faca todo o interior da vasilha, até botar na panela o que restava, uma mistura de raspas com ferrugem. Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectativa enquanto o café não fervia, o Coronel como que sentiu brotar de suas tripas cogumelos e lírios malignos. Era outubro. Eis uma manhã difícil de vencer, esta, mesmo para um homem de sua fibra, sobrevivente de tantas outras manhãs. Havia cinqüenta e seis anos – desde que acabara a última guerra civil – que ele não fazia outra coisa senão esperar. Outubro era uma dessas raras coisas que chegavam”. (Ninguém escreve ao coronel, de Gabriel García Márquez).

“Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno da solidão”. (O Continente 1, de Erico Veríssimo)

Na ardente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros vermelhos; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade”. (O Aleph, de Jorge Luis Borges)

M.S.V.

terça-feira, 29 de março de 2011

O Ubuweb e os arquivos da cultura


Um site criado a partir a ideia de que a web não pode funcionar exclusivamente sob a lei da audiência, nem sob a lógica do gosto médio, que alimenta a voragem da indústira cultural. Este é o princípio do Ubuweb, criado pelo poeta e “arquivista” Kenneth Goldsmith.

Trata-se de um acervo de arte moderna e contemporânea que inclui milhares de vídeos, áudios e textos de difícil acesso, já que podem ser encontrados apenas em bibliotecas de boas universidades. O site Ubuweb – homenagem ao personagem criado por Alfred Jarry – armazena e disponibiliza gratuitamente criações artísticas em várias áreas da produção cultural, sem se importar com os direitos autorais.

Do Brasil, lá estão poemas dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e letras de Caetano Veloso. Detalhe: o Ubuweb não pode ser encontrado pelo Google e, como as poucas coisas boas da web, é preciso saber que ele existe para poder encontrá-lo na rede. Como ainda sou um leitor de mídia impressa, descobri o Ubuweb fora da internet, ao ler reportagem de Miguel Conde no suplemento Prosa & Verso do último sábado (O Globo, 26/3/2011).
M.S.V. 

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Presença de Moacyr Scliar


Assim que soube da morte de Moacyr Scliar, ocorrida no último domingo em Porto Alegre, fui às estantes procurar seus livros. Para minha surpresa, constatei que o que possuo em casa está longe de ser representativo dos mais de oitenta livros publicados pelo escritor em sua fértil trajetória literária. Passei então a folhear as páginas de O carnaval dos animais, de 1968, reunião de contos que ele considerava seu primeiro livro de fato (antes, havia publicado Histórias de um Médico em Formação, em 1962, ano em que se formou em Medicina, e Tempo de espera, de 1964, com Carlos Stein).

Em seguida examinei um exemplar de A orelha de Van Gogh, autografado e com dedicatória datados de 1989. Este livro de contos não foi o primeiro de Scliar publicado por uma editora de fora do Rio Grande do Sul, mas certamente foi aquele que deu novo fôlego e projeção nacional para sua carreira. Além de extensa e variada, a obra de Moacyr Scliar é cheia de surpresas, como o até hoje pouco conhecido Os Voluntários, de 1979, ou o comovente O exército de um homem só, de 1973. Mas foi com O centauro no jardim, de 1980, e A estranha nação de Rafael Mendes, de 1983, que Scliar se firmou como um dos renovadores da narrativa urbana na literatura brasileira.

Logo percebi que os poucos livros de Moacyr Scliar presentes em minha biblioteca não combinavam com a forte presença do escritor em minha memória e na minha formação de leitor. Lembrei então que vários de seus livros foram lidos de empréstimo da Biblioteca Pública de Porto Alegre, antes e durante os anos de faculdade. Mas, aos poucos, fui constatando que esta pesença era fruto de um outro fator: a proximidade que Scliar sempre buscou com os leitores, principalmente os da nova geração. E mais: provinha de uma espécie muito particular de amizade que um escritor constrói com seus leitores ao longo da vida, ao publicar, ano após ano, suas histórias. Ainda que soubesse que dificilmente fosse ler tal livro recém lançado, ver um novo lançamento de Scliar nas livrarias ou nas ruas sendo carregado por outros leitores servia de conforto e dava sentido às nossas vidas.

Na década de oitenta, Moacyr Scliar era uma presença constante nos círculos culturais e educacionais de Porto Alegre. Ele visitava com frequência escolas e universidades para falar de seus livros e da sempre cobrada relação da Medicina, profissão que exercia durante o dia, com a literatura. Lembro que no primeiro ano do curso de Jornalismo, na PUC, o professor nos obrigou a ler a pequena novela A festa no castelo, e, numa certa noite, Scliar foi até nossa sala de aula para conversar com os alunos. Era assim, simples, próximo, sem espetacularização, sem mídia.

Mas é claro que, num outro sentido, havia mídia. Afinal, um escritor precisa ir em busca de seu público, e Scliar fazia isso muito bem: além de publicar com regularidade, colaborava intensamente com jornais, participava de eventos, palestras, autógrafos etc. Enfim, garimpava e alimentava lenta e continuamente seu público leitor. Ao contrário de Raduan Nassar, o escritor que abriu mão da vida literária, Moacyr Scliar não só acreditava na literatura, mas principalmente, no leitor e em sua formação ao longo do tempo.

Na década de noventa, ele se tornou um escritor conhecido nacionalmente. Antes disso, aliás, já fora publicado em vários países e já era reconhecido lá fora como um de nossos maiores escritores em atividade.

Com sua morte, os necrológios habituais falam de sua trajetória, da falta que fará na literatura brasileira, do seu legado, de suas influências literárias, do seu estilo etc. Prefiro lembrar de sua presença na vida cotidiana dos jovens que se tornavam adultos nos anos setenta e oitenta e que olhavam para Moacyr Scliar como alguém que escrevia e publicava com uma regularidade ao mesmo tempo fascinante e duvidosa mas, sobretudo, tranquilizadora, pois tínhamos nele um escritor que escrevia e publicava enquanto nós, leitores, tocávamos nossa vida.

Ao morrer, aos 73 anos, Moacyr Scliar deixa uma legião de leitores. Parafraseando o que escreveu Nicholson Baker sobre John Updike, os leitores de Moacyr Scliar o conhecem “de um jeito que só se pode conhecer um escritor que já escreveu muito, inclusive muita coisa de que você já se esqueceu, retendo apenas um sentimento duradouro de amizade, que é talvez a emoção residual mais importante em toda a experiência literária”. Agora que ele já não escreve mais, só nos resta voltar ao vasto e inusitado edifício literário que ele ergueu com palavras de fabulosa imaginação.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...