quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Roland Barthes e os dilemas do crítico

O crítico francês Roland Barthes
As notas de aula de Roland Barthes no Collège de France são a pedra de toque deste precioso projeto de reedição das Obras Completas do crítico francês. Já são mais de quinze volumes publicados pela editora Martins Fontes, todos com a supervisão de Leyla Perrone-Moisés, uma das maiores especialistas na obra do crítico francês e que, no Brasil, foi a principal responsável pela divulgação e explicação da obra de Barthes.
Intitulado A preparação do Romance, (São Paulo: Martins Fontes, 2005) o livro, em dois volumes, reúne os fragmentos e as anotações que Barthes escreveu para ler diante de seus alunos no prestigioso Collège de France, entre 1979 e 1980.
Essas notas permaneciam inéditas até 2003, quando a editora francesa Seuil, de Paris, começou a publicá-las em livro. E são reveladoras dos projetos e temas que ocupavam a mente de Barthes nos últimos anos de sua vida. O curso que deu no Collège de France foi interrompido por sua morte, ocorrida bruscamente em 1980, quando foi atropelado por um carro ao atravessar a rua.
Nessas aulas, Barthes se interroga sobre as condições de possibilidade que se apresentam a um escritor na preparação de uma obra de ficção. Ficamos sabendo, por exemplo, de seu projeto pessoal de escrever um romance, intitulado Vita Nova, que ele não pode realizar em decorrência da morte.
O fato não deixa e surpreender, e me pergunto se todo crítico não esconde em si o desejo de escrever ficção. A crítica e a interpretação literárias são, por definição, atividades de segunda ordem, mas nem por isso desprovidas de sentido: a função da crítica é servir de mediação entre os produtores e o público.
Como diz um outro crítico que admiro, George Steiner, “nem Tolstói ou Dostoiévski precisam de mim, mas eu tenho necessidade persistente, ética e imaginariamente, de A morte de Ivan Ilytch ou de Memórias do Subsolo”. Ou seja, o crítico é o sujeito que ama a literatura e seu caminho é mostrar ao leitor as razões pelas quais ele ama e conhece determinada obra.
Num momento em que a crítica acadêmica aprofunda ainda mais sua distância de critérios como gosto pessoal, intuição e sensibilidade em favor do acúmulo teórico-metodológico, nunca é demais reafirmar as razões e os propósitos da atividade crítica. Essas razões podem ser encontradas no velho criticismo, empenhado na tarefa de explicar o texto para o leitor.
Como escreve George Steiner: “Não julgar o dissecar, mas mediar. Somente através do amor pela obra de arte, somente através do reconhecimento constante e angustiado por parte do crítico da distância que separa seu ofício daquele do poeta, pode tal mediação ser alcançada. Trata-se de um amor tornado lúcido pela amargura: que olha para os milagres do gênio criativo, discerne seus princípios de existência, exibe-os para o público e, entretanto, sabe que não tem a menor participação, nem mesmo a mais ínfima, na sua criação”. (Tolstói ou Dostoiévski: um ensaio sobre o velho criticismo. São Paulo: Perspectiva, 2006).
Esse dilema do crítico que alimenta o desejo de escrever um romance parece muito visível nessas notas de Roland Barthes. Ele, que escrevia com estilo, que trabalhava a frase como um escritor, agora sabemos que alimentava o desejo de criar obras ficcionais. Barthes desejava uma Vida Nova de narrador, liberto das obrigações discursivas que a atividade crítica impõe, mas isso o destino não lhe possibilitou.
Quantos críticos não vivem esse dilema? Eis por que acredito que a crítica literária precisa surgir de um gesto de amor pela obra, jamais de ressentimento.

M.S.V.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Otto Karpfen não é Carpeaux

            O título dessa postagem é uma brincadeira com o nome de família e o pseudônimo mais conhecido do grande crítico literário e jornalista austríaco Otto Maria Carpeaux, que chegou ao Brasil em 1939, fugindo do Nazismo. Agora, um livro que o próprio Carpeaux se preocupou em excluir de sua bibliografia tem sua primeira tradução para o português publicada no país: trata-se de Caminhos para Roma – Aventura, queda e triunfo dos espíritos (Trad. de Bruno Mori, Vide Editorial, R$ 35,00).
            Publicado em 1934, em Viena, o livro expõe uma face ainda pouco conhecida de Carpeaux: sua ligação explícita com o catolicismo, que exerceu forte influência nos rumos da política austríaca na conturbada década de 1930. Outro dado importante sobre esta obra, que precisa ser levado em conta pelo leitor brasileiro, é que este foi um dos primeiros textos publicados por Carpeaux após sua decisão de se retirar da religião judaica, ocorrida em abril de 1933.
            Para marcar publicamente sua conversão ao catolicismo austríaco, Otto acrescentou o “Maria” ao seu nome de família “Karpfen”, compondo assim um dos vários pseudônimos que adotou ao longo da vida. Nesse sentido, Caminhos para Roma é muito mais uma obra escrita por Otto Maria Karpfen do que por Otto Maria Carpeaux, nome que adotou no Brasil a partir do início da década de 1940, e pelo qual passou à posteridade como um dos nossos mais brilhantes críticos literários.
            Com isso, quero dizer que Carpeaux foi um “twice born”: um sujeito que, derrotado politicamente em 1938, com a anexação da Áustria por Hitler, partiu para o exílio onde precisou se reinventar para sobreviver.
Obra de difícil classificação, pois transita pela filosofia, teologia, história das ideias e até por discussões científicas, o livro recorre a diferentes correntes de pensamento -- da religião à política, da ciência à moral -- para demonstrar a tese de que todos os caminhos, filosóficos, estéticos e humanísticos, conduzem para um mesmo ideal: a unidade do Ocidente cristão sob a égide de Roma.
            No decorrer dos sete capítulos que compõem o livro, Carpeaux empenha-se em demonstrar que a religião de Roma é o ponto para onde convergem todos os movimentos do espírito, da física à estética, da ética à política. 
É possível identificar nessa obra europeia de Carpeaux uma atitude de reação à nascente indústria de bens simbólicos, principalmente pelos efeitos desses novos valores de classe na condição humana, no esgarçamento das relações entre fé e moral, entre arte e fé. Em suma, esta é uma obra pautada pela crítica à modernidade a partir de um ponto de vista religioso.
Caminhos para Roma é uma obra cujo contexto de produção remete a esse ambiente, ou melhor, a esse combate típico do século XIX, contra o mal e contra a luz de Satã. Esta era a concepção religiosa do então Otto Maria Karpfen e muito pouco disso, ou quase nada, está presente nos brilhantes e lúcidos artigos que iria escrever e publicar no Brasil a partir da década de 1940. Afinal, a própria fé católica de Carpeaux passou por um processo de secularização, cuja causa parece estar nos dramáticos acontecimentos vividos em Viena e no posterior exílio forçado no Brasil. Decididamente, Karpfen não é Carpeaux.
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...