quinta-feira, 31 de outubro de 2024

 O rumor do tempo nas páginas de Machado de Assis

Lá estão os arcaísmos de superfície, as palavras fora de moda, os ditados esquecidos e as velhas ironias. Tudo lembra uma peça de antiquário, mas a lição que fica ao final da leitura é de uma atualidade permanente.

É a sensação que temos ao ler Páginas recolhidas, coletânea de Machado de Assis publicada em 1899 que inclui contos, crônicas e outros textos de ocasião (Editora Garnier, 2006).

O livro é uma miscelânea e tudo o que está lá surgiu primeiro nos jornais da época, como o texto que recorda sua convivência com o livreiro e editor Baptiste-Louis Garnier, que foi um dos principais editores brasileiros da segunda metade do século 19. 

Garnier publicou tudo o que de mais importante surgia em matéria de literatura por aqui, de autores como José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Gonçalves de Magalhães, Aluísio de Azevedo, Olavo Bilac, além do próprio Machado de Assis.

Pois o texto que fecha este livro é justamente “Garnier”, um relato breve, em tom memorialistico, escrito por ocasião da morte do livreiro francês e publicado em outubro de 1893,. Machado abre o texto com a imagem do velho editor, morto, em seu caixão, sendo conduzido para o cemitério S. João Batista, no Rio.

Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Não, murmurou ele talvez dentro do caixão mortuário, quando percebeu para onde o iam conduzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na Rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, à esquerda; é ali que estão os meus livros, a minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escrituração”, escreve Machado.

Outro texto que dá sabor de época a está coletânea é o conto “Papéis velhos”, que retrata um deputado, de nome Brotero, que, num momento de crise pessoal, encerrado no seu gabinete de trabalho, madrugada alta, relê seus velhos papéis. “Não se releem livros ?”, pergunta ele. É assim que, “mergulhado nesse mar morto de recordações apagadas, negócios pessoais ou públicos, um espetáculo, um baile, dinheiro emprestado, uma intriga, um livro novo, um discurso, uma tolice, uma confidência amorosa”, o deputado começa a remexer no seu passado amoroso e pessoal. 

O leitor é levado a uma situação de suspense: achamos que ele vai romper com a hipocrisia e a falsidade que o rodeiam, mas, ao final, a carta que ele escreve, nessa madrugada de crise, rompendo com a vida em sociedade, será depositada junto aos demais papéis velhos, cujo destino é “o mar morto de recordações apagadas”. Em Machado, sabemos isso de seus contos e dos romances da segunda fase (Dom Casmurro, Memórias Póstumas etc) querer não é poder.

M.S.V.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

 Crônica: a escrita do Eu - Parte 1

De onde surgiu a crônica?

Gênero de literatura ligado ao jornalismo, praticado no Brasil há mais de um século, com tanta naturalidade e riqueza que até parece um gênero tipicamente brasileiro.

Estilo: em tom de conversa, próximo da vida cotidiana, oralidade, estabelece uma conversa com o leitor;

Origem: do grego Chronos; tempo. Sua origem está na crônica dos acontecimentos históricos;

Inspiração: o lembrar e o escrever; registro do que fica do vivido; o testemunho de uma vida, de uma época;

O cronista é um artesão da experiência; transforma a matéria-prima do vivido em narração; mestre na arte de contar histórias;

Quase todos os escritores e jornalistas brasileiros foram e/ou são cronistas. Mas o início de tudo está com os cronistas do descobrimento. Depois vieram Olavo Bilac, Machado de Assis, João do Rio. Isso sem citar os escritores modernos, do século 20;

É possível definir a crônica?

O cronista é aquele que consegue dar significação ao prosaico, ao pormenor condenado ao esquecimento, às coisas miúdas.

A crônica nunca foi um gênero maior e somos tentados a pensar que se o fosse talvez perdesse aquela habilidade estilística que, exatamente por ser despretensiosa, consegue captar o humano presente no dia-a-dia. Também não se pode conceber uma literatura feita unicamente de cronistas.

Além de fixar a oralidade no plano da linguagem escrita, a crônica é o gênero capaz de dizer as coisas mais sérias por meio de uma aparente conversa fiada.

A vida ao rés-do-chão, como definiu Antonio Candido, a crônica mantém uma relação com o factual, que lhe serve de referência primeira.

De acordo com Gustavo Corção, as crônicas enquanto gênero podem ser divididas em duas espécies: de um lado estão aquelas que se submetem aos fatos e que pretendem fornecer material contemporâneo à peneira dos historiadores; de outro lado, temos aquelas crônicas que se servem dos fatos para superá-los, ou que tomam os fatos do tempo como pretextos para divagações que escapam à ordem dos tempos.

M.S.V.

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