sábado, 26 de junho de 2010

Proust , ou a leitura como resistência

Que eu me lembre, jamais tomei a palavra resistência em seu sentido politico, mas existencial. Há 25 anos, quando ainda vivia em Porto Alegre, cidade tão distante de onde estou hoje – e não era nem um pouco feliz por lá --, minha leitura de resistência de todas as noites era Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.

Durante mil e tantas noites – e após um pesado e frustrante dia de trabalho – eu tentava decifrar aquelas páginas, aqueles parágrafos intermináveis, que eram sempre maiores do que a página. Na maioria das vezes, o sentido da frase proustiana me escapava por completo e era necessário voltar para reler e reler...

O maior desafio ao leitor de Proust é a frase: orações subordinadas se sobrepõem a outras subordinadas, sempre entremeadas por longos apostos. Desejamos o ponto final, mas ele não chega. Proust sofria de asma, mas é o leitor que fica sem respirar.

Em outras noites, o maior inimigo era o sono. De novo era preciso voltar a página para reler. Acostumei-me tanto a essa rotina de releituras que, ao terminar o sétimo e último volume da Busca, no instante seguinte dirigi-me à estante para retornar ao primeiro volume, No caminho de Swann, pois não queria mais parar de ler Proust.

Nenhuma outra obra me acompanhou por tanto tempo como aquela. Ao final, é desolador constatar que, depois que conhecemos o destino do Barão de Charlus, a história da Princesa de Guermantes perde muito de seu brilho inicial. Isso sem falar na degradante relação de Swann com Odete. Ler Proust é uma experiência inesquecível e fascinante!
M.S.V.

domingo, 20 de junho de 2010

Drogba, ou a dignidade do futebol

Ele pode até nem fazer gol e seu time talvez seja derrotado para o Brasil hoje. Mas o atacante Drogba, da Costa do Marfim, entra em campo na condição de estrela. Uma estrela diferente entre os milionários atletas do futebol-negócio. Enquanto outras “estrelas” batem palmas em igrejas, ele usa o dinheiro de patrocínios para construir um hospital com 200 leitos em Abidjan, na Costa do Marfim. Só por isso já mereceria a vitória. O povo da Costa do Marfim precisa mais do sucesso no futebol do que nós, brasileiros. O Brasil não pode continuar sendo apenas o país do futebol. Nossas conquistas e nossa identidade precisam ser modeladas ou forjadas em outros setores da vida.

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A imprensa tem criticado o teinador Dunga por realizar treinos fechados. Esta talvez seja a postura mais corajosa já adotada por um treinador de futebol, pois representa uma defesa da privacidade em detrimento da espetacularização. Certamente Guy Debord aprovaria tal postura. Deixem o Dunga treinar sua equipe sossegado. Chega de transformar os bastidores em parte integrante do show.
M.S.V.

terça-feira, 15 de junho de 2010

A pátria de chuteiras

A frase de Nelson Rodrigues ecoa como uma daquelas verdades incontestáveis numa tarde como a de hoje. Daqui a alguns minutos a seleção brasileira entra em campo para fazer sua estréia na Copa. No bairro onde moro, em São Paulo, só é possível ouvir o som estridente das vuvuzelas. A cidade inteira parou. Acho que o país inteiro fechou as portas para entrar em campo. Da janela de minha casa, posso ver dezenas de bandeiras verde-amarelas tremulando ao sol deste outono paulistano.

A frase de Nelson ecoa novamente, como a dizer-me: para entender a cultura brasileira é preciso conhecer o futebol. Penso em Paul Auster e na sua sentença de que não se pode compreender a cultura norte-americana sem entender o basebol. Daqui a pouco o Brasil entra em campo. É hora de mergulhar no veneno-remédio chamado futebol.
M.S.V.

domingo, 6 de junho de 2010

O menino e a biblioteca

O menino lê Jorge Luis Borges na Biblioteca Pública de sua cidade. No salão imenso, com cadeiras de espaldar alto e mesas compridas, feitas de madeira sólida e escurecida pelo tempo, ele aguarda os livros chegarem por um pequeno elevador. A funcionária chama os leitores por um número e cada um se aproxima para pegar o exemplar que foi escolhido no imenso fichário localizado na sala ao lado. Nada de computadores, nada de logins ou senhas. Foi nesta imensa sala de leitura que o menino descobriu o mundo da literatura.

O pequeno livro solicitado desce pelo elevador e lhe chega às mâos. A leitura de O Aleph, de Jorge Luis Borges, lhe causa uma estranheza tão profunda e ao mesmo tempo tão sedutora, que o menino não consegue parar de ler. Estranheza diante de personagens tão singulares, de enredos que se passam em terras e épocas distantes.

Na Biografia de Tadeo Isidoro Cruz, por exemplo, ele é levado a pensar que está diante de um perfil, já que todo o conto se estrutura em conformidade com o gênero biográfico. As datas parecem não deixar dúvida disso: “No dia 6 de fevereiro de 1829, os guerrilheiros que, fustigados por Lavalle, marchavam do Sul para incorporar-se às divisões de López, pararam numa estância cujo nome ignoravam, a três ou quatro léguas do Pergamino.”

E assim ele continua a leitura desse escritor que lhe é ainda desconhecido (sabe que precisa lê-lo, sabe que é importante, mas deconhece os motivos que legitimam tudo isso). A vida de Isidoro Cruz está toda lá, ancorada em datas, lugares e ocorrências. Em Borges, o leitor é levado a estabelecer relação entre as ocorrências narradas e os referentes sobre os quais elas afirmam algo.

Ao mesmo tempo, o menino sabe que está diante de um conto, gênero ficcional e, portanto, não faz sentido interrogar-se sobre a “verdade”, sobre o referente de tais histórias. Mas a atmosfera e o enredo do conto o levam de volta a essa pergunta.

Não é pertinente perguntar se um texto ficcional é verdadeiro ou falso. Isso equivaleria a lê-lo como um texto não literário. Então o menino percebe que o escritor argentino embaralhou as cartas desta distinção clássica. E começa a entender os motivos pelos quais tal leitura lhe foi indicada.

Mas nem mesmo essa constatação é capaz de calar a pergunta que insiste em ser respondida: o nome de Tadeo Isidoro Cruz remete ou não remete a um referente?
M.S.V.

  O Martelo, de Manuel Bandeira . As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cot...