O menino lê Jorge Luis Borges na Biblioteca Pública de sua cidade. No salão imenso, com cadeiras de espaldar alto e mesas compridas, feitas de madeira sólida e escurecida pelo tempo, ele aguarda os livros chegarem por um pequeno elevador. A funcionária chama os leitores por um número e cada um se aproxima para pegar o exemplar que foi escolhido no imenso fichário localizado na sala ao lado. Nada de computadores, nada de logins ou senhas. Foi nesta imensa sala de leitura que o menino descobriu o mundo da literatura.
O pequeno livro solicitado desce pelo elevador e lhe chega às mâos. A leitura de O Aleph, de Jorge Luis Borges, lhe causa uma estranheza tão profunda e ao mesmo tempo tão sedutora, que o menino não consegue parar de ler. Estranheza diante de personagens tão singulares, de enredos que se passam em terras e épocas distantes.
Na Biografia de Tadeo Isidoro Cruz, por exemplo, ele é levado a pensar que está diante de um perfil, já que todo o conto se estrutura em conformidade com o gênero biográfico. As datas parecem não deixar dúvida disso: “No dia 6 de fevereiro de 1829, os guerrilheiros que, fustigados por Lavalle, marchavam do Sul para incorporar-se às divisões de López, pararam numa estância cujo nome ignoravam, a três ou quatro léguas do Pergamino.”
E assim ele continua a leitura desse escritor que lhe é ainda desconhecido (sabe que precisa lê-lo, sabe que é importante, mas deconhece os motivos que legitimam tudo isso). A vida de Isidoro Cruz está toda lá, ancorada em datas, lugares e ocorrências. Em Borges, o leitor é levado a estabelecer relação entre as ocorrências narradas e os referentes sobre os quais elas afirmam algo.
Ao mesmo tempo, o menino sabe que está diante de um conto, gênero ficcional e, portanto, não faz sentido interrogar-se sobre a “verdade”, sobre o referente de tais histórias. Mas a atmosfera e o enredo do conto o levam de volta a essa pergunta.
Não é pertinente perguntar se um texto ficcional é verdadeiro ou falso. Isso equivaleria a lê-lo como um texto não literário. Então o menino percebe que o escritor argentino embaralhou as cartas desta distinção clássica. E começa a entender os motivos pelos quais tal leitura lhe foi indicada.
Mas nem mesmo essa constatação é capaz de calar a pergunta que insiste em ser respondida: o nome de Tadeo Isidoro Cruz remete ou não remete a um referente?
M.S.V.
domingo, 6 de junho de 2010
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