Pular para o conteúdo principal

"O cacto", de Bandeira

Houve tempo em que a leitura de poemas era para mim um hábito quase diário. Tenho a impressão de que a poesia é mais necessária quando somos jovens e estamos ainda em busca de um caminho.

Entre os poetas brasileiros, Manuel Bandeira talvez tenha sido o autor ao qual mais retornei para releituras. E não havia mediação crítica nessas leituras. Só muito mais tarde, já aluno de Teoria Literária na USP, é que acrescentei à minha experiência de leitura as análises do crítico literário e professor Davi Arrigucci Jr.

Foi num de seus cursos que conheci O cacto, um pequeno poema que o professor Davi analisava em aula. De seu método, guardei para sempre a atitude que todo leitor deve ter diante da poesia, antes mesmo da interpretação: trata-se da escavação filológica, procedimento aberto por Erich Auerbach. Publicado em 1925, O cacto impressiona pela beleza áspera que exala de seus versos.

“Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia:

- Era belo, áspero, intratável.

Este poema é exemplar da peculiaridade da poesia de Manuel Bandeira, obra forjada, no dizer de Arrigucci Jr., num momento decisivo, “intenso e complexo da história cultural brasileira na década de vinte, quando se renova a consciência artística nacional e vão se firmando em nosso meio as tendências da arte moderna”. (O cacto e as ruínas, p.11)

Concebida em meio aos embates entre tradição e renovação, arcaísmo e modernismo, velho e novo, atraso e desenvolvimento, a poética de Bandeira cataliza e expressa as contradições históricas da década de 20. Revela também o diálogo do poeta com a tradição literária, visível no segundo e terceiro versos da primeira estrofe, em que aparece o drama de Laocoonte sendo devorado pelas serpentes.

A Divina Comédia, de Dante, está presente no episódio do conde Ugolino, que, na prisão, devora os próprios filhos para não morrer de fome (Canto XXXIII, do Inferno).
O cacto foi escrito em Petrópolis, RJ, em 1925. É mesmo um poema belo, áspero e surpreendente até hoje.
M.S.V.

Comentários

Garota no Divã disse…
Oi, professor. Que saudades das suas aulas! Peguei o link para o blog na resposta que vc enviou ao e-mail do Cássio. Vou passar por aqui sempre.
Ah, sempre que ouço a frase "Vai, Carlos! ser gauche na vida" me lembro de vc! hahaha. Adorava suas aulas.
beijos
Luana (da turma que se formou no ano passado em jornalismo, na Faccamp)
Luana, seu comentário deixou-me muito feliz. Também guardo com carinho a memória daqueles tempos de Faccamp. Volte sempre.
Um abraço,
Mauro

Postagens mais visitadas deste blog

Em busca da Terra de Ninguém

No romance O cavaleiro da terra de ninguém o escritor Sinval Medina reconstrói a trajetória do português Cristóvão Pereira de Abreu, sertanista e comerciante que abriu o primeiro caminho terrestre ligando o Uruguai a São Paulo. No distante século 18, havia uma extensa e despovoada faixa do território brasileiro que começava na Colônia do Sacramento, hoje Uruguai, e chegava até os campos da Vila de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, ou apenas Laguna, como chamamos hoje. Nesta vasta e solitária paisagem, viviam “sem lei nem rei” minuanos, tapes, jesuítas, castelhanos, buenairenses e outros tipos erráticos, todos disputando um pedaço desta vasta, rica e desabitada parte do Brasil, chamada muito apropriadamente de Terra de Ninguém. Este foi o cenário escolhido pelo escritor Sinval Medina para contar as aventuras do cavaleiro português Cristóvão Pereira de Abreu, que ficou conhecido como Rei dos Tropeiros, e que encarou o desafio de abrir um caminho por terra ligando as barrancas orientais

A história de uma família numa coleção de netsuquês

O Palácio Ephrussi, na Ringstrasse, em Viena Transformar em livro a história de uma família é uma idéia cujos resultados costumam chatear o leitor, que em geral se vê diante de páginas que desfilam elogios e que só constróem imagens oficiais dos biografados. Não é o que ocorre com A lebre com olhos de âmbar , de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca), que, conta a história de uma coleção de miniaturas feitas de marfim e madeira que pertenceu aos Ephrussis, uma família originária de Odessa, na Rússia, que se estabeleceu na França e na Áustria no final do século 19. Os Ephrussis eram de origem judaica e fizeram fortuna no setor financeiro, ao mesmo tempo em que revelaram-se grandes colecionadores de obras de arte. Ao herdar a coleção de miniaturas, o autor, Edmund de Waal (desconhecido por aqui, mas parece que e reconhecido lá fora como ceramista) decide mergulhar na história para resgatar a trajetória de seus avós. Parte para Paris e Viena em busca de documentos de seus antepassad