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Mostrando postagens de 2012

Da memória de um leitor

Três romances me marcaram desde sempre: O Continente , de Érico Veríssimo, Ninguém escreve ao coronel , de Gabriel García Márquez e Em busca do tempo perdido , de Marcel Proust. Essas histórias remetem a três dimensões de minha formação: o primeiro fala das origens, em uma região específica do Brasil, e que sempre precisam ser superadas; o segundo expõe a contingência e as implicações de ser latino-americano. E o terceiro remete à tradição ocidental, da qual somos ramos tardios. Esses três romances ajudaram-me e ainda me ajudam a entender quem sou e o que estou sendo. Compartilho, a seguir, as inesquecíveis primeiras linhas desses três romances. (M.S.V.) “Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno da solidão ”. ( O Continente 1 , de Erico Veríssimo) “O Coronel destampou

Vida de professor, destino de escrevente

Os poucos e exigentes leitores deste blog me perguntam por que tenho postado com menos freqüência nos últimos meses. Respondo com uma palavra: é a vida de professor universitário, que, com suas demandas tantas, quase não deixa tempo para a prática de uma escrita livre, dirigida ao público amplo, e não aos pares, como ocorre na vida acadêmica atual. Pois são tantas as atividades e incumbências que um professor de universidade pública brasileiro precisa cumprir atualmente que tudo deve ser direcionado ao campo acadêmico. Tudo precisa resultar numa entrada no Lattes, sob o risco de nada “render”. Vejo-me hoje transformado num escrevente acadêmico, imerso num laborioso e angustiante trabalho de Sísifo. “Onde se escondeu o projeto de uma carreira autoral?”, pergunto-me. Releio o ensaio “escritores e escreventes”, de Roland Barthes, incluído na coletânea Crítica e verdade (Ed. Perspectiva). O texto é da década de 1950, mas parece ter sido escrito ontem, pois ajuda, e muito, a pensar sobr

Na semana da Flip, a literatura de Jonathan Franzen

Franzen, capa da Time Nesta quarta-feira começa a décima edição da Flip , a Festa Literária de Paraty. Embora o escritor homenageado seja o nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade, boa parte das atenções devem se dirigir para a presença de três dos mais importantes escritores em atividade hoje. Estarão presentes em Paraty o norte-americano Jonathan Franzen, o inglês Ian McEwan e o espanhol (na verdade, catalão) Enrique Vila-Matas. Três vozes bem distintas uma da outra, mas extremamente significativas da literatura praticada neste século XXI. Percorro livrarias em São Paulo e vejo que os livros de Franzen inundam as prateleiras. Até uma coletânea de artigos dele (“Como ficar sozinho?”) foi traduzida. Franzen já está no Brasil e, pelo que leio, deseja conhecer um pouco do país após seus compromissos na Flip. Quer visitar a Bahia e o Pantanal, onde pretende fotografar pássaros, seu hobby favorito. Aproveito o fait-divers em torno de Franzen e retomo a leitura interrompid

“Tigres no espelho”: ensaios de George Steiner

George Steiner Tem livro novo de George Steiner nas livrarias. “ Tigres no espelho e outros textos da The New Yorker ” (Globo Livros, R$ 55) reúne 28 ensaios publicados originalmente na conceituada revista norte-americana. Durante muitos anos seus ensaios foram minha leitura constante. Agora temos nova oportunidade de conhecer sua prosa cheia de inteligência e verve, que honra o leitor, numa época em que “até mesmo as pessoas instruídas têm apenas tintura de conhecimento clássico ou teológico”. Sim, Steiner tem familiaridade com diferentes culturas e está em casa quando falar de literaturas e autores os mais diversos, e em diferentes idiomas. George Steiner nasceu em Paris, em 1929, mas foi educado na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua formação é incomum, rara para os dias de hoje: foi alfabetizado em francês, inglês e alemão. Li certa vez uma entrevista dele na Magazine Litteraire , em que ele lembra como foram fundamentais para sua formação as sessões semanais de leitura d

A história de uma família numa coleção de netsuquês

O Palácio Ephrussi, na Ringstrasse, em Viena Transformar em livro a história de uma família é uma idéia cujos resultados costumam chatear o leitor, que em geral se vê diante de páginas que desfilam elogios e que só constróem imagens oficiais dos biografados. Não é o que ocorre com A lebre com olhos de âmbar , de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca), que, conta a história de uma coleção de miniaturas feitas de marfim e madeira que pertenceu aos Ephrussis, uma família originária de Odessa, na Rússia, que se estabeleceu na França e na Áustria no final do século 19. Os Ephrussis eram de origem judaica e fizeram fortuna no setor financeiro, ao mesmo tempo em que revelaram-se grandes colecionadores de obras de arte. Ao herdar a coleção de miniaturas, o autor, Edmund de Waal (desconhecido por aqui, mas parece que e reconhecido lá fora como ceramista) decide mergulhar na história para resgatar a trajetória de seus avós. Parte para Paris e Viena em busca de documentos de seus antepassad

Arte e resistência na China

"Bicicleta": instalação de Ai Weiwei Ele passou quase três meses na cadeia e hoje vive em prisão domiciliar. Teve seu ateliê, que custou US$ 1,2 milhão, totalmente destruído e seu blog retirado do ar. Ai Weiwei, um dos mais conhecidos artistas chineses, sofreu todas essas ações por um único motivo: manifestou suas opiniões publicamente. Na China, isso é crime. A imprensa chinesa está proibida de falar no seu nome e ele também não pode se manifestar, mas vem burlando essa proibição graças ao Twitter. Na China, o serviço de microblogs pode ser acessado por redes privadas, o que impede que seja bloqueado pelo governo, a exemplo da internet. Recentemente, a Folha de S. Paulo publicou uma entrevista exclusiva com o artista. Mesmo proibido de falar à imprensa, inclusive do exterior, Weiwei não se omitiu de expressar suas opiniões e lutar pela liberdade individual na China. O artista chinês Ai Weiwei “Fui espancado, quase terminei meus dias no hospital por causa das lesões,

Vida longa para o romance

O escritor chileno Roberto Bolaño Dia desses perguntei aos meus alunos se costumavam ler romances. Qual não foi minha surpresa ao constatar que mais da metade da classe respondeu de forma positiva à pergunta. Percebi então que a resposta de meus alunos contrariava um discurso muito comum nos meios e nas mídias intelectualizadas, que insiste em afirmar que o romance não é mais culturalmente relevante. A resposta de meus jovens alunos contrariava também o argumento do crítico norte-americano Lee Siegel, que, em artigo (que acabo de ler) na última edição da revista Serrote, insiste na tese do fim da relevância cultural desse gênero. “Pergunte a si mesmo quando foi a última vez que leu um romance que o comoveu como um filme o comove”, escreve ele. De minha parte, respondo com tranquilidade: nos últimos anos, as obras de J. M. Coetze e Roberto Bolaño têm me marcado mais do que qualquer outra experiência artística. Tão forte, comovente e chocante tem sido a leitura dos romances desses do

A ambição de Julien Sorel

O escritor francês Stendhal (1783-1842) Pode parecer muito distante no tempo, mas a literatura dos séculos 18 e 19 tem muito a nos dizer sobre um dos sentimentos que mais provoca angústia ao ser humano: a ambição. Julien Sorel, o personagem principal de O vermelho e o negro , romance de Stendhal, publicado em 1830, encarna como poucos esse sentimento, frequentemente condenado pelo pensamento médio, mas inerente ao humano, embora não se manifeste em todos os seres humanos. Até o século 18, os personagens principais da literatura eram, via de regra, pícaros, sujeitos miseráveis cujas aventuras se confundiam com a luta pela própria sobrevivência. Mas uma nova idéia começa a surgir, na esteira de um movimento maior, de afirmação do íntimo e do individualismo. Jovens cheios de sonho e ambição chegam às grandes cidades dispostos a “vencer”: isso significa conquistar o amor de belas e ricas mulheres e ganhar espaço na hierarquia social. No século 19, esse movimento chegará ao seu apogeu c

A vingança de Emma Zunz

Nos últimos tempos, tenho pensado muito em vingança. Não no sentido banal da palavra, mas na vingança enquanto resposta a uma injustiça. Mais ou menos como o que fez Emma Zunz, a personagem de Jorge Luis Borges no conto homônimo, incluído em O Aleph (Ed. Globo, Trad. de Flávio José Cardozo). No desejo de vingar seu pai, injustamente acusado de um desfalque no caixa da empresa em que trabalhou a vida toda, ela monta uma estratégia limite, tão terrível quanto eficaz. A vingança de Emma, que resultou em um assassinado, não a levou ao castigo. A justiça humana não tem lugar nesse conto de Borges. Pois Emma valeu-se do próprio corpo no corajoso estratagema que montou. Nem o asco de si mesma, nem a tristeza de ter chegado tão longe impediram-na de levar a cabo o planejado. Foram dois tiros a queima roupa e o culpado estava no chão. Mas ela não podia ser castigada: afinal, era um ato de vingança com fim justo. Quando a polícia chegou, acusou o morto de ter abusado dela. Antes, porém, tomou p

Thomas Bernhard, uma (re)descoberta literária

Thomas Bernhard, escritor austríaco nascido na Holanda Poucas coisas são tão encantadoras na relação do leitor com a obra literária quanto a redescoberta de um texto ou o reencontro com um autor que havia muito não o líamos. Refiro-me ao escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), que redescobri neste período em que estive em Viena. Até então, havia lido apenas, no início dos anos 1990, O sobrinho de Wittgenstein (RJ: Rocco, 1992, trad. de Ana Maria Scherer) e conhecia, de orelha, romances como Extinção , Árvores Abatidas e O Náufrago , todos já traduzidos para o português. Eis que em Viena descobri Heldenplatz , uma peça teatral que estreou no Burgteather em 1988, marcando de forma polêmica os 50 anos do Anschluss da Áustria com a Alemanha de Hitler. Heldenplatz , ou Praça dos Heróis, era o lugar que mais gostava de ir quando estava em Viena, seja para passear ou simplesmente sentar e ficar observando o movimento dos turistas e a paisagem (os monumentos, o passado, os trau

Uma lágrima para Daniel Piza

O ano de 2012 iniciou com uma notícia triste para o jornalismo brasileiro: a morte de Daniel Piza, ocorrida na sexta-feira à noite, dia 30, aos 41 anos. Não o conhecia pessoalmente; era apenas um leitor de sua coluna semanal no “Caderno 2” de O Estado de S. Paulo e acompanhava, assim como muitos leitores, sua brilhante trajetória de crítico e de escritor. Jornalista com sólida formação cultural, Daniel Piza era formado em Direito, não fez faculdade de Jornalismo e tudo indica que sua cultura era fruto muito mais do ambiente familiar e de um tenaz esforço individual do que de uma educação formal, escolar. Era capaz de escrever sobre vários assuntos, com inteligência e agilidade. O amplo espectro de seus interesses, que ia da política às artes, passando pelo futebol, e a imagem de jovem culto e extremamente produtivo eram os traços marcantes de sua persona pública. Praticou, como poucos, o jornalismo de ideias, combinando erudição com divulgação, sem vulgarização. Nem sempre concordava