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Mostrando postagens de 2011

Modesto balancete de uma viagem de pesquisa

Velhos bondes ainda estão em atividade Amanhã é meu último dia em Viena.   Hoje, o sol saiu convicto, como poucas vezes vi nesses dois meses em que aqui fiquei.   Aproveitei para fazer algumas compras e, ao contrário do que imaginava, quando caminhava pela cidade, não senti nem tristeza, nem nostalgia. Não fiz passeios de despedida. Nesse período, aproveitei tudo o que pude – e dentro do que estava ao meu alcance. Trabalhei e vivi a cidade no seu cotidiano. Conheci a cultura, os hábitos, os falares, os humores, misturei-me à população em geral. Sei que descortinei apenas um fragmento da cultura desta cidade, em que a germanização, que lhe é própria, cada vez mais se alimenta do multiculturalismo. **** Vim para fazer uma pesquisa documental e tive mais trabalho do que imaginava. Esse tipo de pesquisa, de natureza empírica, tem sempre algo de imprevisível. Passei a maior parte do tempo pesquisando em bibliotecas, fuçando arquivos, consultando material bibliográfico, conversando com e

À espera do Natal e na neve

Centro de Viena em clima de Natal Viena está em festa. Os jornais anunciam que nesta semana, impreterivelmente, a neve que já cobre as montanhas no Oeste dos Alpes, descerá o vale do Danúbio até a velha cidade dos Habsburgos. É só o que falta para o cenário natalino ficar completo, já que por todas as ruas por onde passo, as luzes de Natal dão o colorido típico ao consumismo desenfreado que contagia a todos nessa época do ano. As comemorações do Natal aqui iniciam já em meados de novembro, com a montagem de dezenas de “feirinhas” nos principais pontos da cidade. São quiosques com artesanato típico, comidas e bebidas quentes, que ficam lotados à noite e nos finais de semana. Aos sábados, na Mariahilfer Strasse, tradicional e chique rua de comércio – contrastando com a popular Favoriten Strasse, que é bem mais longe de Innerestadt – o trânsito precisa ser interrompido para dar escoamento à enorme massa de pessoas que se aglomera nas lojas e calçadas em busca de presentes ou mesm

De estrangeiros e de moradias: algumas impressões

Mariahilfer Strasse: padrão arquitetônico se repete pela cidade O que é ser estrangeiro? É ser reconhecido pelo sotaque ou pela pronúncia. É ser classificado com um simples olhar pelo tipo físico ou pela cor da pele. Ou então pelo modo como se ganha a vida, ou seja, pelo trabalho, e pelo círculo de amizades, pelos hábitos incorporados. Diante dessa realidade, o conceito de cidadania não consegue dar conta. O sujeito pode ter direitos iguais, mas continua sendo um estrangeiro aos olhos dos nativos de um determinado local. Pensei nisso após escutar a história de Draggo, um sérvio que mora há 16 anos em Viena. Fala alemão com um levíssimo sotaque eslavo. Deixou Belgrado com os pais e irmãos em 1995 para tentar a vida em Viena. Não voltou mais. Como ele, a quase totalidade dos empregados do hotel em que estou é de estrangeiros que chegam aqui e vão aprendendo o idioma no dia a dia, mas não têm nem terão condições de conseguir um emprego melhor. Percebo que a inclusão num determinado mei

Espetáculo de música sacra na Catedral

Catedral de Santo Estéfano, em Viena (Fonte: Wikipedia) O novo filme de Nanni Moretti, Habemus Papam , está em cartaz nos cinemas aqui. Em entrevista ao Wiener Zeitung ontem, o diretor explica que não quis fazer nenhuma crítica ao poder do Vaticano, nem abordar assuntos polêmicos como os casos de pedofilia ou as finanças da igreja. “Não me queixo da Igreja nesse filme”, declarou Moretti ao jornal. Sua preocupação foi, sobretudo, contar o processo de escolha de um Papa, o Conclave, a partir de um ângulo psicanalítico. O cinema já produziu muitos filmes sobre a Igreja e o Vaticano e não é esse o assunto que quero abordar aqui. O filme de Moretti me fez refletir sobre a antiga e sólida relação que a Áustria mantém com o catolicismo, desde os tempos do império austro-húngaro. Dia 08 foi feriado católico aqui, chamado de Imaculada Conceição (M aria Empfangnis , no original). A Catedral de Santo Estevão, ( Spephansdom ), que é a igreja matriz da Arquidiocese da Áustria, estava apinhada

Isto também é Viena

Em minhas caminhadas por Viena, encontro algumas imagens que, embora nada tenham de excepcionais, revelam aquele lado que toda cidade tem, mas que os cartões postais costumam deixar de fora. Ruas estreitas, longe do burburinho consumista dos turistas, pichações na parede. Deparei-me com essas imagens ontem, a caminho do Arquivo da Universidade de Viena, que fica num prédio muito antigo, longe do campus principal, que fica na parte nobre da cidade.  Uma das mais antigas da Europa, a Universidade de Viena foi fundada em 1365 e, hoje, tem 88 mil alunos.  Nessa parte, já próximo do Rio Danúbio, não há turistas e pode-se ver os vestígios desta velha cidade européia. As fotos, de amador, não tem nenhuma pretensão, a não ser a de revelar um pouco desse lado desconhecido da cidade, que descubro no meu cotidiano aqui. M.S.V.

Itinerário afetivo de uma pesquisa

Prédio da Biblioteca Nacional Austríaca, na parte central do  Hofburg Viena. Jamais me esquecerei desses dias em Viena, em que pesquiso os papéis de Otto Karpfen. Já são muitas as boas e fortes lembranças desse período, mas as bibliotecas que conheci aqui merecem uma atenção à parte. Como faço uma pesquisa documental, tenho ido a várias instituições, museus e arquivos da cidade. Em todos os lugares, seja em instituições públicas ou particulares, tenho sido muito bem atendido. A qualidade dos serviços à disposição do estudioso e do pesquisador é impressionante. Mas penso que nenhum outro local me encantou tanto quanto a Österreichische Nationalbibliothek , a Biblioteca Nacional Austríaca. Localizada em Heldenplatz – o encantador e enigmático Heldenplatz , sobre o qual ainda escreverei --, a ONB é o lugar ideal para se ler, estudar e pesquisar. Não apenas pelo acervo, cujos números desconheço, mas principalmente pelo ambiente. E uma biblioteca sem ambiente afasta os leitores. Fac

Poesia da gramática e do sabor

Viena. Meu jornal de leitura diária aqui é o Wiener Zeitung (“Vina tzaitung”, como me ensinou insistentemente a senhora da banca da esquina), um standard diferente dos nossos, pois tem mais largura e menos comprimento. A edição deste fim de semana tem 48 páginas divididas em quatro cadernos e esta estrutura se repete nos demais dias. O jornal é sóbrio e tem um bom equilíbrio entre texto e imagem. Desde o início me chamou atenção na banca, por destoar de tablóides populares como Kronen Zeitung e Österreich , ou o Heute , distribuído gratuitamente por toda a cidade. Os vienenses com quem tenho contato diário vêem meu esforço para aprender a pronúncia correta de palavras e expressões e me ensinam, com muito boa vontade. Mas observo que nem todos tem disposição para dominar com fluência o idioma da cidade em que moram. Viena é hoje uma cidade com muitos imigrantes, vindos de continentes como Ásia e África. No metrô, vejo vários desses imigrantes falando alto ao celular, no seu idioma

Carpeaux, Canetti e o velho Instituto de Química de Viena

O Instituto de Química da Wahringerstrasse, em Viena, onde Carpeaux e Canetti estudaram na década de 1920  Viena. Em busca de rastros e pistas que me levem a reconstituir a trajetória do crítico e jornalista Otto Maria Carpeaux (1900-1978), conhecido aqui em Viena como Dr. Otto Karpfen, cheguei à esquina da Wahringerstrasse com a Turkengasse.  É nesse endereço que está localizado o Instituto de Química da Universidade de Viena, onde o jovem Otto Karpfen estudou entre os anos 1920 e 1925. Em suas memórias, o escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994) relembra os tempos em que estudou no mesmo Instituto da Wahringerstrasse, e descreve-o como “o velho instituto enfumaçado, situado no começo da Wahringerstrasse” ( Uma luz em meu ouvido , Companhia das Letras, trad. Kurt Jahn). Não há dúvida, é este o prédio, pensei, parado na calçada da Wahringer, numa fria tarde de inverno. Canetti viveu muitos anos em Viena e foi nessa cidade que conheceu Veza, com quem viveria por toda a vida. Vez

De turista a estrangeiro

Bicicletas para alugar na Maria Hilfer Strasse, Viena         Viena. Depois de quase um mês vivendo o cotidiano de uma cidade, a condição de turista dá lugar à de estrangeiro.  Isso possibilita um olhar ao mesmo tempo menos apressado e mais atento a detalhes que o cidadão que vive a rotina do dia-a-dia costuma ignorar.  Como, por exemplo, o sujeito que estende o copo pedindo umas moedas na escada da estação do metrô Burgasse , onde passo duas vezes todos os dias.         É essa mesma condição que me permite escutar nas ruas e no metrô os diferentes sotaques que, em alguns casos, imagino (apenas imagino, embora consiga perceber que não falam como o nativo de Viena), correspondam a dialetos de regiões como o Tirol, próximo da Itália, a Caríntia, mais ao Sul, ou a Upper Áustria, ao norte, que faz fronteira com a República Tcheca.         Esses falares que escuto diariamente sem entender não impedem a comunicação, pois a norma culta do idioma alemão serve de parâmetro e dá a um estran

Passeando pelo centro de Viena

Viena, 04/11/2011, 11h30. A capital da Áustria pode ser exemplo para muitas coisas, mas poucas são tão eloquentes quanto a relação que esta cidade estabelece com seu velho e histórico centro. Enquanto a imensa maioria das médias e grandes cidades assiste inerte, ou até estimula, uma expansão urbana que vai do centro para a periferia, deixando imensas áreas que já contam com infra-estrutura caminharem para a degradação, em Viena parece ocorrer um movimento contrário. Aqui o poder público valoriza, restaura e mantém o dinamismo de sua área central, chamada de Innere Stadt . O centro de Viena é uma espécie de cidade dentro da cidade, circundada por grandes avenidas que formam um único anel. O círculo começa no canal do Danúbio, segue pelas avenidas Shotternring, Karl Lueger Ring, Karl Renner Ring, Burgring, Opernring, Kartner Ring, Schubertstrasse Park Ring e Stuben Ring, para terminar novamente no Danúbio. Esta fisionomia urbana tem origem no século 19, quando uma ampla reforma altero

A língua em sua dimensão mais banal

Viena, 02/11/2011, 13h00. Já dizia Walter Benjamin que a linguagem não poderia ser definida por seu significado instrumental. Ao ressaltar o aspecto mágico e sua imediaticidade, o filósofo alemão buscava excluir esse viés utilitário da língua, para ele identificado com uma concepção burguesa da linguagem. Ora, é exatamente essa dimensão instrumental, condenada por Benjamin, que estou vivenciando nesses dias aqui em Viena, em que me sinto completamente cercado pelo idioma alemão. No hotel, nas ruas, no shopping, nos restaurantes e nos cafés, e até mesmo no quarto, quando ligo o aparelho de TV, o idioma está por todos os lados, penetrando pelos ouvidos e pelos poros, como um vírus. Confesso que, nos primeiros dias, senti-me acossado. Aos poucos, porém, passei a ficar à vontade com a situação. Afinal, essa viagem de pesquisa tem também esse objetivo: sanar as dificuldades de quem aprendeu o idioma depois dos 30 anos. Assim, minha única alternativa era procurar me comunicar em alemão, s

A caminho de Viena: primeiras impressões

  Viena, 28/10/2011, 11h a.m. Cheguei, enfim. Depois de ter ficado atordoado com as dimensões e a complexidade de um Aeroporto como o Charles De Gaule, em Paris, onde permaneci por algumas horas, segui para Viena. Quando sobrevoei Paris, que já foi a capital do século XIX, mas que continua sendo uma capital da cultura, e avistei o Sena se contorcendo lá embaixo, desejei que o avião retornasse. Mas como? Há pelo menos dez anos que você sonha com Viena. E agora, que está há apenas duas horas do seu destino, deseja mudar os planos? Recostei a cabeça na poltrona e deixei que a imagem dos Alpes (onde está localizada a Áustria) colocasse lentamente as coisas no lugar. Paris é realmente um fascínio, mas terá que esperar. Meu destino agora é a Europa Central, mais precisamente a capital do poderoso império austro-húngaro, que deixou de existir a partir do final da Primeira Guerra (1914-18), tema, aliás, de um dos livros do jornalista e ensaísta Otto Maria Karpfen (1900-1978), o autor cuja

Preparativos de viagem

Que livros levar numa viagem em que o trabalho solitário será uma constante? “Nem um livro em língua portuguesa”, penso de imediato. Desejo e ao mesmo tempo temo o isolamento linguístico. É para isso que também vou: dominar, compreender, agarrar (verstehen,greifen) este idioma que tanto me fascina. Outra voz me aconselha a colocar na bagagem aqueles livros que, desde que me lembro, sempre funcionaram como um tipo muito particular de auto-ajuda: os parágrafos intermináveis de Marcel Proust e os poemas de Manuel Bandeira e Mario Quintana. E também aqueles ensaístas que jamais deixei de reler: George Steiner, Roberto Schwarz, Edward Said e Beatriz Sarlo. Como não levar na mala a ironia de Machado de Assis, que nos fortalece para a vida ou as iluminações (sempre à mão) de Walter Benjamin. Ou ainda a escrita fantástica de Borges, que prepara docemente a viagem noturna do sono. Mas é em Quintana, leitura sempre noturna, que encontrei, nesta manhã de quinta-feira, o breve e belo Matinal,

O autor enquanto sujeito comum

O autor não é um herói da literatura, nem esta tem o poder de salvar o mundo. Ao contrário, o que o autor precisa fazer é livrar-se deste papel que lhe foi incutido pelo sistema de produção literária. Só assim será possível ter “uma consciência lúcida do mundo”. As palavras são do escritor chinês Gao Xingjian, cujo texto “Ideologia e literatura”, foi lido pelo escritor em evento sobre literatura na Itália, ocorrido em junho de 2011, e publicado no Suplemento Sabático, de O Estado de S. Paulo, em 8 de agosto último. O tema abordado por Gao Xingjian, as relações entre política e a arte de escrever, talvez não tenha tanta relevância no Brasil, mas faz sentido naquelas sociedades não plenamente livres, como é o caso da China. Mesmo assim, são férteis suas reflexões sobre a função do autor na atualidade. Romancista e dramaturgo chinês que há anos vive na França, Xingjian ganhou o Prêmio Nobel em 2000. No Brasil, os leitores podem conhecê-lo por meio de seu romance A montanha da alma (Al

A modernidade na periferia do país

Estive em Porto Alegre há algumas semanas e aproveitei para voltar à Casa de Cultura Mário Quintana. Quem entra nesse velho e imponente prédio da Rua da Praia, no centro da cidade, onde um dia funcionou o Hotel Majestic, e que já foi morada do poeta durante muitos anos, sente que está diante de algo muito maior do que um centro cultural. Nos tempos áureos do Hotel Majestic, Porto Alegre era cenário da modernidade, de uma vida literária que incluía autores, tradutores, mercado editorial e leitores. Mário Quintana foi um desses personagens, mas havia muitos outros talentos circulando por lá. Quando entrei numa sala que remetia à obra de Érico Veríssimo, pude ver algumas fotografias daquele que até hoje figura como um dos maiores nomes da literatura brasileira. As imagens retratavam as diferentes fses da carreira do autor de O tempo e o vento. Todos os ícones que traduzem a figura de um escritor estão nessas fotos: Érico escrevendo, em viagem, brincando com o filho, posando ao lado

As leituras profissionais e a "inutilidade” da ficção

Outro dia postei um comentário sobre a impossibilidade de se ler, nos dias de hoje, um romance de 600 páginas. O motivo era o lançamento de Liberdade, o mais recente livro do americano Jonathan Franzen. Quem tem tempo hoje para enfrentar 600 páginas?, perguntava então naquele post. Quanto mais adentramos na vida adulta (com seus inevitáveis compromissos), menos contato temos com a leitura de ficção. Leituras profissionais e/ou técnicas não contam. A constatação me incomodou, pois meu ganha-pão é o ensino e as paredes de minha casa estão repletas de livros. Estou cercado de obras teóricas, de referências, dicionários, publicações acadêmicas, que utilizo em minha profissão. Mas é a literatura, que sempre trazia comigo e que sempre fez parte de minha formação? Foi preciso uma campanha de marketing para me despertar dessa letargia profissional. O estopim foi justamente o romance Liberdade, de Franzen. Na Livraria que mais frequento, a Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, era

Literatura no Paquistão: só para inglês ver

Há certas literaturas que não podem se dedicar exclusivamente à fabulação, ao imaginativo, já que precisam se ocupar com o real. Com isso, acabam por tornar-se mais um documento da realidade do que um monumento da criação poética e romanesca. Isto costuma ocorrer em sociedades fechadas, em que a liberdade de expressão não tem livre circulação. Logo, a literatura acaba por assumir um papel de tribuna, papel esse que, em condições nornais, seria desempenhado pelo jornalismo. Isso fica mais evidente quando se examinam os caminhos do romance neste século 21. Leio no Suplemento Prosa & Verso , do jornal O Globo , entrevista da escritora paquistanesa Kamila Shamsie , que tem seu romance Sombras marcadas (Ed. Alfaguara) recém-lançado no país. Nascida em Karachi, no Paquistão, em 1973, seu livro (o primeiro a ser lançado no Brasil) aborda as marcas deixadas nos sobreviventes pela tragédia nuclear de Nagasaki, ocorrida durante a Segunda Guerra. Há analogias com acontecimentos decorrentes

Existem leitores para 600 páginas?

Na próxima semana chega às livrarias o novo romance de Jonathan Franzen (foto), Liberdade . São mais de 600 páginas. É claro que vem aclamado pela crítica (ela é parte do mercado) e credenciado pelo suposto sucesso junto aos leitores norte-americanos. Sérgio Augusto, em sua coluna do suplemento Sabático , de O Estado de S. Paulo , afirma que o “romance pode ser lido como um folhetim”. Duvido. Ainda existirão hoje leitores para 600 páginas? Quem se deixará levar por uma “história alegórica em torno de uma família do Meio Oeste norte-americano”? O gênero romance tem uma longa tradição e sua longevidade esta associada à sua capacidade de renovação. Já tivemos Balzac e Tolstoi com seus calhamaços, suas sagas e painéis de época. E já tivemos Proust com seus parágrafos intermináveis. Agora ficamos sabendo que Franzen escreve ao estilo do século 19. Lançado no ano passado, Liberdade cobre três décadas, conta a saga de uma família e aborda temas tãso atuais como a guerra do Iraque, a crise

Especialização e cultura generalista

A crescente e inevitável especialização do conhecimento tem cada vez mais confinado a produção do saber na esfera acadêmica. Num mundo de especialistas, parece causa perdida insistir no interesse geral e na cultura geral. Principalmente por que essa ideia pode sucumbir com facilidade na simplificação operada pela grande mídia, sempe mais interessada no acontecimento e na audiência do que na problematização das questões. Os efeitos da fragmentação do conhecimento e da lógica disciplinar que rege a vida acadêmica – e essa é uma tendência mundial – já são visíveis tanto na linguagem das ciências humanas e sociais, quanto no viés epistemológico que as inspira: o modelo de produção das ciências exatas. Nossas pesquisas hoje resultam em textos relatoriais, em que o estilo é (mal) visto como um resquício do ensaismo que um dia era a marca das humanidades. A pergunta que precisa ser feita diante desse estágio do nosso conhecimento é a seguinte: é possível

Calvino e o “círculo do livro”

O escritor italiano Italo Calvino publicou Se um viajante numa noite de inverno em 1979. Já escrevi aqui que este é um romance sobre a escrita do romance. Fala de manuscritos perdidos, falsificações, editores, tradutores, estudiosos de literatura. Enfim, de todo aquele conjunto de agentes que compõe o campo literário. O trecho selecionado a seguir parece antever a era da ficção amarrada com o merchandising. Até onde sei, o fenômeno não ocorreu com o romance, mas integra “naturalmente” a produção das novelas de TV. A edição que possuo é do Círculo do Livro, editora que até a década de 1980 faturava alto com suas edições de best sellers vendidos por correspondência. Cheguei a comprar alguns livros por esse método, e ainda lembro que 99% do catálogo era de obras de auto-ajuda, romances açucarados e best sellers. As edições eram muito bem encadernadas e as capas coloridas, feitas para fisgar o leitor.  Que essa obra de Calvino tenha sido publicada pel

O primeiro parágrafo fisga o leitor

Sempre que estou numa livraria, em busca de um romance novo (ou antigo) para ler, me divirto lendo o primeiro parágrafo da história. Se o início de um romance me atrai, provavelmente vou continuar a lê-lo. Creio que todo escritor sabe que é preciso fisgar o leitor já nas primeiras linhas. Imagino uma antologia da literatura formada unicamente pelo primeiro parágrafo de romances, novelas e até contos. Transcrevo a seguir três inesquecíveis começos de histórias que li na juventude e que até hoje não cesso de reler. “O Coronel destampou a lata do café e notou que apenas restava uma colherinha de pó. Tirou a panela do fogo, jogou no chão de barro batido a metade da água e raspou de faca todo o interior da vasilha, até botar na panela o que restava, uma mistura de raspas com ferrugem. Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectativa enquanto o café não fervia, o Coronel como que sentiu brotar de suas tripas cogumelos e lírios malignos

O Ubuweb e os arquivos da cultura

U m site criado a partir a ideia de que a web não pode funcionar exclusivamente sob a lei da audiência, nem sob a lógica do gosto médio, que alimenta a voragem da indústira cultural. Este é o princípio do Ubuweb , criado pelo poeta e “arquivista” Kenneth Goldsmith. Trata-se de um acervo de arte moderna e contemporânea que inclui milhares de vídeos, áudios e textos de difícil acesso, já que podem ser encontrados apenas em bibliotecas de boas universidades. O site Ubuweb – homenagem ao personagem criado por Alfred Jarry – armazena e disponibiliza gratuitamente criações artísticas em várias áreas da produção cultural, sem se importar com os direitos autorais. Do Brasil, lá estão poemas dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e letras de Caetano Veloso. Detalhe: o Ubuweb não pode ser encontrado pelo Google e, como as poucas coisas boas da web, é preciso saber que ele existe para poder encontrá-lo na rede. Como ainda sou um leitor de mídia impressa, desco

Presença de Moacyr Scliar

Assim que soube da morte de Moacyr Scliar, ocorrida no último domingo em Porto Alegre, fui às estantes procurar seus livros. Para minha surpresa, constatei que o que possuo em casa está longe de ser representativo dos mais de oitenta livros publicados pelo escritor em sua fértil trajetória literária. Passei então a folhear as páginas de O carnaval dos animais , de 1968, reunião de contos que ele considerava seu primeiro livro de fato (antes, havia publicado Histórias de um Médico em Formação , em 1962, ano em que se formou em Medicina, e Tempo de espera , de 1964, com Carlos Stein). Em seguida examinei um exemplar de A orelha de Van Gogh , autografado e com dedicatória datados de 1989. Este livro de contos não foi o primeiro de Scliar publicado por uma editora de fora do Rio Grande do Sul, mas certamente foi aquele que deu novo fôlego e projeção nacional para sua carreira. Além de extensa e variada, a obra de Moa