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Mostrando postagens de 2009

Vozes da África e da biblioteca

Sérgio Augusto escreve no caderno Aliás, de O Estado de S. Paulo, que Desonra , de J.M. Coetzee, foi o melhor romance que leu “nos últimos dez anos”. Exagero. É verdade que o livro incomoda, e muito, e também é verdade que uma das funções da grande arte é justamente incomodar o leitor, fazê-lo ir além do puro entretenimento. Mas considerá-lo o melhor romance dos últimos dez anos é esquecer os últimos Phillip Roth ou ignorar Roberto Bolaño ou Le Clézio, cujas obras são por demais representativas da atual literatura. No mesmo artigo, "Vozes d’África", o jornalista escreve que a África do Sul, sede da Copa do Mundo que inicia em junho de 2010, tornou-se “um dos países politicamente mais estáveis e democráticos do mundo, um modelo para os vizinhos, uma meca turística, um pólo de produção cinematográfica”. Pode até ser isso mesmo, mas a sociedade que surge da obra de Coetzee não é essa maravilha toda. Não se eliminam de uma hora pra outra os ressentimentos culturais fomentados dur

A escritura é a moral da forma

A frase acima é Roland Barthes, o admirado crítico francês que nos anos 1960 e 1970 foi muito lido. Pois foi com o autor de Fragmentos de um discurso amoroso que despertei para essa “divina increnca” que se chama crítica literária. Ainda está vivo em minha memória o momento em que, numa feira de livros da longínqua Porto Alegre, no não menos distante ano de 1982, comprei um exemplar de Crítica e Verdade . Poucos títulos resumem tão bem o problema central desta atividade: que relação existe, afinal, entre crítica e verdade? Chega-se à verdade de uma obra por meio do exercício critico? Agora, relendo O grau zero da escritura , percebo que este pequeno livro é uma preciosidade. No texto que abre esse ensaio, Barthes desenvolve o conceito de escritura, ligando-o às noções de língua e estilo. Enquanto aquela está aquém da literatura, o estilo está “quase além”, escreve. “O estilo tem sempre algo de bruto: é uma forma sem destinação, o produto de um impulso, não de uma intenção, é como que u

Anotações de um copista

Para que serve a literatura? Borges costumava responder a esta pergunta com outra: ninguém se questiona sobre a utilidade do canto de um passarinho ou das cores do céu ao entardecer, dizia. No ensaio que abre a coletânea A cultura do romance (recém chegado às livrarias, e que comentei aqui outro dia), o escritor peruano Mario Vargas Llosa argumenta, com sabedoria e perspicácia, que a literatura e, em especial, o romance, não é um passatempo de luxo, destinado a uns poucos felizardos (geralmente mulheres) que dispõem de tempo livre para a leitura desinteressada. Desses argumentos, copio: “ A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com seu destino, de todo contentes com a vida do modo como a vivem. A literatura é alimento dos espíritos indóceis e propagadora da inconformidade, um refúgio para quem tem muito ou muito pouco na vida, onde é possível não ser infeliz, não se sentir incompleto, não ser frustrado nas próprias aspirações. Cavalgar junto ao esquálido Rocinante e a

O poema e a realidade

Quando se é jovem, e os sonhos ainda não passaram pelo crivo da realidade, nem os projetos foram postos à prova, então lemos poemas e nos emocionamos com eles. Mas quando os barcos – bêbados de desejo – são arrastados por contra-ventos e marés e ameaçam bater em terras desconhecidas... Quando já não se imagina que, da leitura de um simples soneto, poderá haver emoção, o surpreendente acontece. Uma lágrima solitária verte e escorre pelo rosto vincado por tantas tardes e manhãs, “que enchem de cinza o coração da gente”. O que mais pedir de um poema? Basta que nos chacoalhe com seu cântico de certezas. Como na emoção despertada pela leitura do soneto XVI de A rua dos cataventos , de Mario Quintana. M.S.V. “Triste encando das tardes borralheiras Que enchem de cionza o coração da gente! A tarde lembra um passarinho doente A pipilar os pingos das goteiras... A tarde pobre fica, horas inteiras, A espiar pelas vidraças, tristemente, O crepitar das brasas na lareira... Meu Deus... o frio que a

A cultura do romance

Nenhum outro gênero renega tanto sua própria natureza quanto o romance. Desacreditado, quase sempre em crise, ele atravessou os séculos e sobreviveu a ataques de todos os tipos, do Estado, da Religião e até da própria crítica, que por mais de uma vez lhe decretou a morte ou o acusou de falsificar a realidade. O fato é que, desde meados do século XIX, quando o gênero se fixou entre os leitores das metrópoles européias, com os ingleses Defoe e Fielding, o romance construiu mais do que uma história: há mesmo uma cultura do romance manifesta em certas constantes, como o individualismo, o mito do herói, a formação da personalidade (bildungsroman), a interioridade, o sujeito, o narrador, a viagem. Esses aspectos e muitos outros estão contemplados na gigantesca e fascinante coleção O Romance , coordenada pelo crítico italiano Franco Moretti, cujo primeiro volume ( A cultura do Romance ) foi lançado recentemente no país (Cosac Naify, 1.120 págs., trad. de Denise Bottman, R$ 130). Organizada em

Crítica literária e jornalística

Em entrevista recente, fui perguntado sobre as diferenças entre a crítica jornalística e a crítica literária. O assunto é importante, pois mexe com fatores cruciais para se entender os rumos atuais da cultura letrada. Respondi que toda crítica literária é, em maior ou menor grau, jornalística, pois tem por função servir de intermediação entre o autor e o público. O Brasil possui uma vasta tradição de crítica literária publicada em jornais, e mais do que isso: produzida para o jornal. Depois, é claro, essa crítica vira livro, mas aí já é outra coisa. E por que existe essa proximidade? Porque o crítico precisa comunicar algo para o público. Há uma dimensão publicista da crítica literária que não pode ser esquecida. Ora, o que acontece quando o crítico literário deixa de escrever para o público? Não precisa publicar mais em jornal, e sim em revistas acadêmicas. Por isso sustento essa proximidade entre a crítica jornalística e a literária. São parte da mesma matriz discursiva. É claro que

Pequena crônica de um grande gênero

Entre todos os gêneros de escrita, a crônica talvez seja o mais livre e, ao mesmo tempo, mais difícil de ser definido. E isto se deve, creio, à amplitude estilística e temática que a caracterizam. Na imprensa brasileira, por exemplo, tudo aquilo que é publicado sob a rubrica de crônica acaba se incorporando a esse caldeirão de estilos em que cabe tudo, ou quase. O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, por exemplo, classifica de crônica todos os seus escritos jornalísticos. Onde quer que escreva e sobre o assunto que for, será sempre crônica, costuma repetir em suas entrevistas. No Brasil, a crônica é praticada desde o início de nossa literatura. Há quem diga que se trata de um gênero tipicamente brasileiro, assim como o ensaio é identificado como um gênero tipicamente inglês. É evidente que não somos os únicos a escrever crônica e nem o ensaio é exclusividade dos praticantes do idioma de Shakespeare. São apenas associações entre estilo e cultura. Iniciei com uma referência à amplit

Apresentação de Edward Said

Uma apresentação das ideias e da trajetória de Edward Said (1935-2003) implica, necessariamente, fazer referência às suas origens. Isto por que suas raízes o situam na encruzilhada dos problemas atuais entre Oriente e Ocidente e no coração dos conflitos do Oriente Médio. Said nasceu em Jerusalém, mas não é judeu, é palestino de origem, mas sua família professava a fé cristã. A etnia árabe não o transformou em muçulmano. A isso tudo, some-se uma formação que teve início no Cairo e se prolongou por Nova York, onde Said acabou se fixando em definitivo ao se tornar professor na Universidade de Columbia. Intelectual humanista, sua trajetória foi marcada por uma posição de crítica tanto em relação ao establishment político e cultural do Ocidente, quanto em relação ao mundo árabe. Autor de dezenas de livros abordando sempre as relações entre cultura e política, tornou-se mundialmente conhecido a partir da publicação de Orientalismo , em 1978. Nesta obra, procurou desconstruir as concepções d

A história de um derrotado

Desonra , de J.M. Coetzee, foi finalmente adaptado para o cinema. Desde o seu lançamento, em 1999, muitos diretores tentaram comprar os direitos deste romance do escritor sul-africano. Coetzee somente autorizou a adaptação recentemente, e coube aos também sul-africanos Steve Jacobs e Anna Monticelli o desafio de transpor para as telas esta inquietante e devastadora história, que se passa na África do Sul pós-apartheid. Em Desonra , o ressentimento, os ódios de classe e o conformismo são as forças que ocasionam os conflitos entre personagens que habitam uma sociedade dilacerada. O apartheid acabou; ficou a terra devastada por conflitos não resolvidos. John Malkovich interpreta David Lurie, um professor de literatura que, aos 52 anos, tornou-se um derrotado. Leva uma vida sem sobressaltos, burocrática, conformada. Pragmático, ele resolve sua solidão recorrendo a uma prostituta, a quem visita regularmente uma vez por semana. Sua rotina desmorona depois que ele se envolve com uma de suas a

Anotações de um copista

Dois inesquecíveis começos de romances, para relembrar ou descobrir. “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Adormeço’. E, meia hora depois, despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela”. ( Em busca do tempo perdido,Vol. 1, de Marcel Proust ). “Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno da solidão”. ( O Continente 1, de Erico Veríssimo ) M.S.V.

"O cacto", de Bandeira

Houve tempo em que a leitura de poemas era para mim um hábito quase diário. Tenho a impressão de que a poesia é mais necessária quando somos jovens e estamos ainda em busca de um caminho. Entre os poetas brasileiros, Manuel Bandeira talvez tenha sido o autor ao qual mais retornei para releituras. E não havia mediação crítica nessas leituras. Só muito mais tarde, já aluno de Teoria Literária na USP, é que acrescentei à minha experiência de leitura as análises do crítico literário e professor Davi Arrigucci Jr. Foi num de seus cursos que conheci O cacto , um pequeno poema que o professor Davi analisava em aula. De seu método, guardei para sempre a atitude que todo leitor deve ter diante da poesia, antes mesmo da interpretação: trata-se da escavação filológica, procedimento aberto por Erich Auerbach. Publicado em 1925, O cacto impressiona pela beleza áspera que exala de seus versos. “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte constrangido pelas serpentes, Ugoli

Um Orkut do livro?

É muito bem-vindo o surgimento de O livreiro , uma rede social dedicada ao mundo do livro. Lançada na Flip deste ano, em Paraty, o projeto, ainda em fase experimental, pretende ser um agregador de conteúdo ligado à leitura e ao livro. Criado pela Infoglobo, empresa que edita o jornal O Globo, entre outras publicações, O Livreiro pretende ser um espaço de relacionamento para todos aqueles que gostam de ler, independente de gênero, preferência, faixa etária etc. A home do site explica que se trata de “uma rede social para quem gosta de livro. De qualquer tipo: poesia, história, música, internet, comportamento, clássicos, quadrinhos, filosofia, gastronomia”. Além de criar páginas pessoais, os internautas poderão expandir a teia adicionando amigos, criando comunidades e conectando-se aos mais variados tópicos, sempre ligados ao mundo do livro. Num país de poucos leitores, como o Brasil, a iniciativa deve ser não apenas aplaudida, mas disseminada entre os jovens. M.S.V.

Anotações de um copista

Manhã tranqüila, à mesa de trabalho para ler, sublinhar, marcar e anotar os movimentos de minha leitura. À moda de um copista medieval, transcrevo passagens, anoto fragmentos. Ao acaso, vou construindo uma teia de vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Zigmunt Bauman é minha leitura de auto-ajuda. A metáfora da vida líquida, marcada pela precariedade, "vivida em condições de incerteza constante", é uma imagem reconfortante para enfrentar os desafios da vida presente. Estar sempre pronto a reiniciar, a livrar-se das coisas com despreendimento, com o mesmo desapego que empregamos quando adquirimos algo. Escreve Bauman: "A vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade so

Descobrir Cortázar

Morto há 25 anos em Paris, o argentino Julio Cortázar é um escritor para ser descoberto sem pressa. Autor de “O jogo da Amarelinha”, “História de Cronópios e de Famas” e “Bestiário”, Cortázar criou uma obra difícil de ser definida. Construiu um verdadeiro continente literário cuja palavra-chave para descortiná-lo talvez seja o "fantástico". A seguir, um link do Youtube onde o escritor fala brevemente sobre a criação de uma de suas obras-primas, História de Cronópios e de Famas. M.S.V.

Carpeaux e o método

“Um professor de matemática – é Lichtenberg que conta a história – explicou certa vez aos estudantes um teorema, acrescentando: ‘Existe uma excelente demonstração desse teorema, mas não tenho muito tempo e não me sinto hoje bem disposto. Vocês me conhecem. Sabem que sou fidedigno. Juro que o teorema é verdadeiro. E basta’. Gostaria de empregar esse mesmo ‘método’ de demonstração, jurando que O trapicheiro , o primeiro volume do roman-fleuve de Marques Rebelo, é muito bom; que é uma obra de valor extraordinário: e basta. Tempo, para demonstrá-lo, me sobra e disposição não me falta. Mas há vários outros motivos para justificar minha atitude axiomática. Antes de tudo: em que pesem os métodos científicos de crítica (dos quais aprovo muitos), não acredito que o valor de uma obra de arte possa jamais ser matematicamente demonstrado. A ciência não admite julgamentos de valor (v. Max Weber e Scheler); o desconhecimento dessa verdade leva os adeptos da crítica científica a prometer coisas que,

Dois poemas de Quintana

No próximo dia 5 de maio completam-se 15 anos desde a morte do poeta Mario Quintana (1906-1994). Por acreditar que a releitura de um livro é a maior homenagem que se pode prestar a um autor, releio Esconderijos do tempo . Publicado em 1986, quando o autor já tinha uma trajetória consolidada no contexto da poesia brasileira, o volume traz 49 poemas bastante reveladores tanto do estilo quanto das temáticas que marcaram a obra poética de Quintana. Como nos dois poemas transcritos a seguir, extraídos da belíssima Coleção Mario Quintana, organizada pela crítica literária Tânia Franco Carvalhal para a Editora Globo. Ah, mundo... Perdão! Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção. Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro eu pensava era nos meus primeiros sapatos que continuavam andando que continuam andando -- rotos e felizes! – por essas estradas do mundo. Preparativos para a viagem Uns vão de guarda-chuva e galochas, outros arrastam um baú de guardados... Inúteis precauções! Mas, Se lev

Sobre um conto de Roberto Bolaño

B. é um escritor desconhecido que anda sem rumo entre cidades da França e Bélgica. Vive mudando de hotel, lê romances que depois joga no lixo, toma notas mas não escreve nada. Gosta de gêneros menores e de escritores desconhecidos. B. é o narrador de “Vagabundo na França e na Bélgica”, conto de Putas Assassinas (Companhia das Letras, 2008), do chileno Roberto Bolaño. Os personagens deste conto não têm nome, apenas iniciais, numa indicação de que os seres que habitam a narrativa já não têm mais identidade. Existência marcada pela extraterritorialidade, B é espanhol de origem, lê romances policiais em francês, idioma que mal conhece, assiste filmes falados em inglês e percorre os sebos em busca de autores esquecidos. A seguir, um pequeno trecho significativo do conto: “Na manhã seguinte pega um trem com destino a Paris. Hospeda-se no hotel da rue Saint-Jacques, em outro quarto, e dedica os primeiros dias a procurar nos sebos um livro qualquer de André du Bouchet. Não acha nada. Du Bouch

Perfume numa página de Proust

Há certos livros que nos acompanham durante anos em releituras sucessivas. Por quase uma década, Em busca do tempo perdido , de Marcel Proust, foi meu livro de cabeceira. Naquela época, nos anos oitenta, carregava sempre comigo um dos sete volumes da Busca. Certa vez, durante uma viagem, um vidro de perfume que trazia na mala quebrou, molhando o exemplar de Proust. Quando abri minha bagagem no hotel, as páginas de À sombra da raparigas em flor , o segundo volume da série, na bela tradução de Mario Quintana, exalavam o perfume derramado. As folhas de Proust secaram e os anos passaram, mas até hoje quando abro aquele exemplar o suave perfume me transporta de imediato para aquele quarto de hotel. As circunstâncias e o motivo da viagem desapareceram da memória, mas o cenário do hotel, aquele insignificante momento, em que nada de especial acontecera, está até hoje vívido na lembrança. Trata-se apenas uma cena, ativada pelo toque daquelas páginas até hoje manchadas de perfume. É a memória i

Naipaul e o enigma da chegada

Poucos escritores têm uma trajetória tão marcada pela distância de sua terra natal quanto V. S. Naipaul. Nascido em Trinidad, neto de brâmane e filho de um jornalista, Naipaul foi estudar em Oxford, na Inglaterra, quando tinha 18 anos. O que era para ser uma temporada de estudos, transformou-se numa permanência que dura até hoje. Mais do que isso: Vidiadhar Surajprasad (o V.S.) fez deste afastamento de suas origens a matéria-prima de sua ficção, que lhe valeu em 2001 o Prêmio Nobel de Literatura (foto). Em O enigma da chegada , livro que releio agora após dez anos, Naipaul faz um acerto de contas com o passado. Isto por que, para ele, abraçar a carreira de escritor significava ao mesmo tempo adotar o inglês como idioma e romper com as próprias origens. “A pequenez colonial que não se coadunava com a grandeza de minha ambição”, lembra o escritor a certa altura deste livro. O tema de O enigma da chegada gira em torno deste desejo de realizar-se como escritor num país estrangeiro, e is

Literatura em perigo não é novidade

Eis um livro que não está nem estará em minha mesa. Trata-se do recém lançado A literatura em perigo , de Tzvetan Todorov (Trad. de Caio Meira, Difel, 96 p,., R$ 25). Não, caro leitor, não se trata de arrogância, desprezo ou falta de interesse pelo tema que, aliás, é dos mais importantes de nossa época. Nesta obra, Todorov – um dos principais expoentes do estruturalismo francês – argumenta que o ensino e a pesquisa de literatura, feito por críticos e professores, está contribuindo para torná-la cada vez menos relevante na sociedade. Em síntese, argumenta que nas escolas e universidades (ele aborda exclusivamente a situação francesa, mas o que diz de lá vale igualmente para o que ocorre aqui) a preocupação metodológica e teórica tomou o lugar dos textos ficcionais. Ora, qualquer um que conheça o que se passa num curso de Letras sabe que isso não é novidade. Para se institucionalizar enquanto área do conhecimento, as sub-áreas acadêmicas ligadas ao ensino e ao estudo das literaturas nece

Um abrigo contra o esquecimento

É preciso um talento incomum para transformar uma história de amor numa narrativa esteticamente convincente. Carta a D. , de André Gorz (Trad. Celso Anzann Jr., Annablume/CosacNaify, 80 págs. R$ 29,00) consegue sair-se muito bem deste desafio. Movido pelo desejo de recontar a trajetória de uma relação de quase seis décadas para compreender o sentido de sua própria existência, o narrador (autobiográfico) se lança na difícil tarefa de elaborar o passado. No entanto, o ato de lembrar não tem o sentido de culto ao passado: o que se vê são as lembranças iluminando o presente. E sem preocupações de ordem cronológica. Uma lembrança puxa outra, num fluxo por vezes aleatório, mas sempre comovente. Como o trecho que descreve o momento em que ele e sua mulher de toda a vida, Dorine, se conheceram, na Paris do pós-guerra. “Nossa história começou maravilhosamente, quase um amor à primeira vista”, escreve. “Depois da terceira ou quarta saída, eu afinal beijei você”, relembra Gorz, em meio a relatos

John Updike, o retratista da vida americana

Houve um tempo em que os livros de John Updike (1932-2009) não saíam de minha mesa. Do escritor americano, morto dia 27 de janeiro, aos 76 anos, guardo com admiração as belas passagens de suas memórias, intituladas de Consciência à flor da pele , da crítica literária reunida em Bem perto da costa ou dos contos de Uma outra vida . A reputação de Updike veio com a extensa série Coelho ( Coelho cai, Coelho corre, Coelho cresce, Coelho em crise, Coelho se cala ), protagonizada por um ex-campeão de basquete chamado Harry Rabbit Angstrom. Escrita ao longo de mais de três décadas, entre os anos 1960-1990, a série sintetiza a concepção de mundo do americano médio. Rabbit é um sujeito alienado politicamente, consumidor de TV e de alimentos congelados e morador de Cidadezinhas (título, aliás, de seu mais recente livro lançado no Brasil), ricas e provincianas, moralistas e religiosas. Esteve no Brasil em 1992 e dois anos depois publicou Brazil , romance ambientado no país, em que faz uma releit

Austerlitz: notas de leitura

Austerlitz , de W.G. Sebald, é construído a partir de um duplo movimento: temos um narrador que conta seus encontros com Austerlitz e, a este relato, feito de lembranças, justapõe-se as recordações do próprio Austerlitz, professor aposentado, especialista em arquitetura do capitalismo, que, por sua vez, conta para o primeiro narrador histórias de suas viagens, descobertas, observações relativas aos mais variados assuntos, como um ornitólogo, um aviador, sua infância etc. A narrativa flui, assim, em camadas de recordações, que tanto podem ser reflexões sobre sua própria trajetória, seus projetos passados e seus sentimentos presentes, como o momento em que reflete sobre o ato de ler: “Como eu gostava, disse Austerlitz, de me sentar na companhia de um livro até noite fechada, até que não conseguisse mais decifrar uma palavra e os meus pensamentos começassem a girar em círculos, e como eu me sentia seguro sentado à escrivaninha de casa na noite escura, apenas observando a ponta do lápis à

Le Clézio e a batalha da literatura

É lugar comum da crítica pensar que quando um escritor escreve sobre literatura contribui para iluminar sua própria obra. Melhor será pensar que quando um ficcionista ou poeta escreve em prosa ensaística acrescenta à sua própria imagem de escritor a de intelectual que contribui para o debate público. É esse o caso de Jean-Marie Le Clézio, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2008. Seu discurso na Academia sueca é uma importante reflexão sobre a situação da literatura e da cultura na autalidade. Por que escrevemos?, pergunta Le Clézio na abertura de seu discurso. Cada um tem seus motivos, suas predisposições, seu contexto de produção. Para este escritor que alimenta sua ficção das vivências no continente africano, escrever é testemunhar aquilo que viveu. Mas escrever é o oposto de atuar, de agir no mundo. “Como pode o escritor atuar, se tudo o que ele sabe fazer é recordar?”, pergunta. Para Le Clézio, o escritor deseja mais do que tudo atuar, ao invés de simplesmente dar seu testem