Na década de 1990, quando escrevia orelhas anônimas para uma editora de São Paulo, caiu-me nas mãos as provas de A dignidade da poesia, de José Lezama Lima (1910-1976). Minha tarefa era, em pouquíssimos dias, ler o material e escrever um texto para a orelha do livro a ser lançado em breve. Na época, a obra do poeta e ensaísta cubano era-me inteiramente desconhecida e o contato com esta estranha coletânea de ensaios foi uma experiência de leitura fascinante.
Lembrei disso ontem pela manhã, durante o café, ao ler no Sabático artigo de Carlos Granés sobre o autor de Paradiso, cujo centenário de nascimento é hoje. Fui à estante à procura do meu exemplar e pude reler o breve texto anônimo que escrevi então: “o leitor brasileiro tem a oportunidade de descobrir por que é impossível permanecer indiferente à força inusitada de suas metáforas ou ao barroquismo crioulo do seu estilo”.
Não sei se escreveria isso hoje: afinal, texto de orelha é texto publicitário. Naquela época, escrevia muitos desses e de outros textos, sempre trabalho anônimo e muito mal remunerado. Mas a possibilidade de ganhar uns trocados por meio da leitura e da escrita me seduziu durante um bom tempo. Conheci as entranhas da indústria editorial e do negócio do livro. Mas também descobri e aprendi muito naquela época. Lia sempe tudo o que editava e isso tornava o trabalho penoso e com uma relação custo-benefício bastante desfavorável a mim.
Quando somos apenas leitores, costumamos esquecer essa fria verdade, de que a indústria de bens simbólicos tem uma lei subterrânea, que é a denegação de sua própria economia de produção. Gera lucro, mas esconde esse fato. A essa lei não escapam nem mesmo os sofisticados produtos da erudição, como a coletâna de Lezama Lima que tenho agora ao meu lado.
Lá estão artigos sobre Góngora, Quevedo, Calderón, Rimbaud, Mallarmé e Valéry, publicados em sua maioria em revistas cubanas nas décadas de 1940-50. O olhar de Lezama sobre a tradição do Ocidente está marcado pela necessidade de devoração, pelo sincretismo das citações e o emaranhado do seu estilo. Por isso o chamam de escritor neo-barroco. Mas isso talvez seja apenas uma etiqueta e não um conceito. Os produtos podem precisar de etiqueta; as obras, como a do poeta cubano, só precisam de leitores.
M.S.V.
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