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O escrevente aos cinqüenta (a maldição de Montano)


Abre uma página de O mal de Montano, de Henrique Vila-Matas. Seus olhos passeiam pelas obsessões literárias do escritor catalão, mas seu pensamento se perde no quarto escuro da memória, este “baú de espantos” em que se desenha o malogro existencial e material de seus projetos de escrita. “O primeiro malogro está ligado à tardividade de minha formação, e que me constitui enquanto ser”, recorda. O segundo malogro é mais palpável: diz respeito às condições materiais da vida. Obrigado a ganhar o sustento, primeiro no jornalismo, depois na sala de aula, seus projetos de escrita sempre estiveram submetidos ao aspecto instrumental dessas atividades. “Haverá tempo?”, pergunta.
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Retorna a esse livro que é em tudo um incômodo, a começar pelo título: Crítica e verdade, de Roland Barthes. Este pequeno volume, que comprou quando tinha 21 anos, sempre exerceu sobre ele um fascínio e uma resistência à leitura. Folheia o livro e constata que há vários trechos sublinhados, marcas de leitura que indicam que já se perdeu por aquelas páginas. E há também a memória de leitura, e por ela comprova que já leu certos artigos, como o seminal “Escritores e escreventes”, mas desconfia que jamais tenha conseguido terminar a leitura de todos esses ensaios. Crítica e verdade poderão caminhar juntas?
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Gastou a juventude buscando o que? “Os livros não vieram; ficaram dentro de mim, como projeto de filhos abortados”, repete para si mesmo. Aqueles ensaios sobre literatura e cultura também não foram escritos. Sempre o trabalho, sempre a busca da sobrevivência. Olha-se ao espelho e o que vê é um acadêmico, imerso num laborioso e angustiante trabalho de Sísifo. “Onde ficou o desenvolvimento da carreira autoral? É a maldição de Montano.”
M.S.V.

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