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Preparativos de viagem

Hoje viajo para Munique, na Alemanha. Ficarei poucos dias, e a viagem é de trabalho. Nem por isso deixo de imaginar uma viagem sem data pra voltar, daquelas em que vamos vivendo tão a fundo o cotidiano que chegamos ao absurdo de querer abandonar a língua materna e assumir em definitivo a condição ontológica de “out of place”, de estrangeiro. Se estivesse aqui, você não hesitaria em dizer: “vamos, este país não nos merece, esse tempo não é o nosso”.  Mas não é disso que quero falar. Ainda escuto sua voz me dizendo: “você precisa ir a Munique para colocar um ponto final nessa pesquisa”. Só você sabe o que isso significa.
Hoje vou atravessar o Atlântico para cumprir esse objetivo. Mas, no fundo, embarco nesse vôo com um sonho bom: na madrugada de segunda-feira, quando estiver a 10 mil metros de altura, vou olhar pela janela a imensidão escura que nos torna tão pequenos, fitar uma estrela e pensar que estou mais perto de você. Então vou adormecer e você estará nos meus sonhos, como acontece quase todas as noites, desde que se foi.
Mas chegará o momento em que o Sol vai entrar decidido pela janela, avisando que a vida continua e que precisa ser vivida. Então você me dirá: “siga em frente, está se saindo bem, dedique-se à sua carreira, publique seus textos, faça isso por mim também”. Em resposta, vou olhar pela mesma janela e avistar um mundo de possibilidades que se descortina lá fora, e sei que você estará comigo. Essa é minha esperança, isso é só o que sobrou daquilo que um dia se chamou religião.

M.S.V.

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