Pular para o conteúdo principal

Le Clézio e a batalha da literatura

É lugar comum da crítica pensar que quando um escritor escreve sobre literatura contribui para iluminar sua própria obra. Melhor será pensar que quando um ficcionista ou poeta escreve em prosa ensaística acrescenta à sua própria imagem de escritor a de intelectual que contribui para o debate público.

É esse o caso de Jean-Marie Le Clézio, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2008. Seu discurso na Academia sueca é uma importante reflexão sobre a situação da literatura e da cultura na autalidade.

Por que escrevemos?, pergunta Le Clézio na abertura de seu discurso. Cada um tem seus motivos, suas predisposições, seu contexto de produção. Para este escritor que alimenta sua ficção das vivências no continente africano, escrever é testemunhar aquilo que viveu. Mas escrever é o oposto de atuar, de agir no mundo. “Como pode o escritor atuar, se tudo o que ele sabe fazer é recordar?”, pergunta.

Para Le Clézio, o escritor deseja mais do que tudo atuar, ao invés de simplesmente dar seu testemunho por meio da linguagem. “Escrever, imaginar e sonhar de tal maneira que suas palavras, invenções e sonhos tenham impacto sobre a realidade, mudem as idéias das pessoas, preparem-nas para um mundo melhor”. Esta é a resposta de Le Clézio para o seu ofício.

Eis um escritor que acredita no poder transformador da literatura. Por isso defende em seu texto que a cultura pertence a toda a humanidade. Além disso, clama por mais alfabetização e maior disseminação do livro entre as populações carentes e isoladas do planeta. Para ele, é fundamental estabelecer fundos para bibliotecas e livrarias ambulantes e, sobretudo, publicar obras escritas nas chamadas línguas minoritárias.

Tudo isso ajudaria a literatura em sua batalha sem fim para proporcionar ao ser humano o “auto-conhecimento, o descobrimento dos outros e para escutar o concerto da humanidade, em toda sua rica gama de temas e modulações”.
M.S.V.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"O cacto", de Bandeira

Houve tempo em que a leitura de poemas era para mim um hábito quase diário. Tenho a impressão de que a poesia é mais necessária quando somos jovens e estamos ainda em busca de um caminho. Entre os poetas brasileiros, Manuel Bandeira talvez tenha sido o autor ao qual mais retornei para releituras. E não havia mediação crítica nessas leituras. Só muito mais tarde, já aluno de Teoria Literária na USP, é que acrescentei à minha experiência de leitura as análises do crítico literário e professor Davi Arrigucci Jr. Foi num de seus cursos que conheci O cacto , um pequeno poema que o professor Davi analisava em aula. De seu método, guardei para sempre a atitude que todo leitor deve ter diante da poesia, antes mesmo da interpretação: trata-se da escavação filológica, procedimento aberto por Erich Auerbach. Publicado em 1925, O cacto impressiona pela beleza áspera que exala de seus versos. “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte constrangido pelas serpentes, Ugoli

Em busca da Terra de Ninguém

No romance O cavaleiro da terra de ninguém o escritor Sinval Medina reconstrói a trajetória do português Cristóvão Pereira de Abreu, sertanista e comerciante que abriu o primeiro caminho terrestre ligando o Uruguai a São Paulo. No distante século 18, havia uma extensa e despovoada faixa do território brasileiro que começava na Colônia do Sacramento, hoje Uruguai, e chegava até os campos da Vila de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, ou apenas Laguna, como chamamos hoje. Nesta vasta e solitária paisagem, viviam “sem lei nem rei” minuanos, tapes, jesuítas, castelhanos, buenairenses e outros tipos erráticos, todos disputando um pedaço desta vasta, rica e desabitada parte do Brasil, chamada muito apropriadamente de Terra de Ninguém. Este foi o cenário escolhido pelo escritor Sinval Medina para contar as aventuras do cavaleiro português Cristóvão Pereira de Abreu, que ficou conhecido como Rei dos Tropeiros, e que encarou o desafio de abrir um caminho por terra ligando as barrancas orientais

A história de uma família numa coleção de netsuquês

O Palácio Ephrussi, na Ringstrasse, em Viena Transformar em livro a história de uma família é uma idéia cujos resultados costumam chatear o leitor, que em geral se vê diante de páginas que desfilam elogios e que só constróem imagens oficiais dos biografados. Não é o que ocorre com A lebre com olhos de âmbar , de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca), que, conta a história de uma coleção de miniaturas feitas de marfim e madeira que pertenceu aos Ephrussis, uma família originária de Odessa, na Rússia, que se estabeleceu na França e na Áustria no final do século 19. Os Ephrussis eram de origem judaica e fizeram fortuna no setor financeiro, ao mesmo tempo em que revelaram-se grandes colecionadores de obras de arte. Ao herdar a coleção de miniaturas, o autor, Edmund de Waal (desconhecido por aqui, mas parece que e reconhecido lá fora como ceramista) decide mergulhar na história para resgatar a trajetória de seus avós. Parte para Paris e Viena em busca de documentos de seus antepassad