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Vozes da África e da biblioteca

Sérgio Augusto escreve no caderno Aliás, de O Estado de S. Paulo, que Desonra, de J.M. Coetzee, foi o melhor romance que leu “nos últimos dez anos”. Exagero. É verdade que o livro incomoda, e muito, e também é verdade que uma das funções da grande arte é justamente incomodar o leitor, fazê-lo ir além do puro entretenimento. Mas considerá-lo o melhor romance dos últimos dez anos é esquecer os últimos Phillip Roth ou ignorar Roberto Bolaño ou Le Clézio, cujas obras são por demais representativas da atual literatura.

No mesmo artigo, "Vozes d’África", o jornalista escreve que a África do Sul, sede da Copa do Mundo que inicia em junho de 2010, tornou-se “um dos países politicamente mais estáveis e democráticos do mundo, um modelo para os vizinhos, uma meca turística, um pólo de produção cinematográfica”. Pode até ser isso mesmo, mas a sociedade que surge da obra de Coetzee não é essa maravilha toda. Não se eliminam de uma hora pra outra os ressentimentos culturais fomentados durante décadas de apartheid. Talvez a principal qualidade da obra do autor sul-africano esteja em trazer à tona tudo aquilo que restou vivo depois que o regime de segregação racial foi oficialmente abolido naquele país.

Outra voz da África que não pode ser esquecida: Mia Couto, de Moçambique. Crítico e ao mesmo tempo um defensor da comunidade lusófona, Mia Couto diz que essa comunidade pode ser bastante útil como reação à homogeneização cultural provocada pela globalização. Vale conferir a entrevista que o moçambicano deu à revista Bula.http://www.revistabula.com/posts/entrevistas/entrevista-mia-couto.

Nesses dias um tanto sem sentido, entre o Natal e o Ano Novo, costuma acontecer algo curioso: andando de uma estante e outra da biblioteca, descubro livros esquecidos que aguardam há muito uma leitura, ou releitura. Sim, é preciso ter sempre surpresas esperando por nós entre as estantes da biblioteca. A escrita ou a vida, de Jorge Semprun, O cavalo perdido e outras histórias, de Felizberto Hernández e Monsieur Teste, de Paul Valéry. Três autores e distintos caminhos ficcionais: literatura feita de memória, de sonho e de reflexão crítica. Prova de que o território do ficcional é inesgotável e vai ao encontro de todos os tipos de leitores.

Em 2009 a Academia Sueca continuou surpreendendo ao agraciar a alemã Herta Müller com o Nobel de Literatura. Ela tem um único livro lançado no Brasil, O compromisso, lançado em 2004 pela editora Globo, com tradução de Lya Luft.
M.S.V.

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