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Sartre, testemunha de seu tempo


Poucas imagens tiveram tanta influência na minha formação quanto a do filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). No próximo dia 15 de abril completam-se três décadas da morte daquele que foi exemplo de intelectual público. No perfil que escreveu sobre ele para o caderno Sabático de O Estado de S. Paulo, no útimo sábado, Gilles Lapouge se pergunta sobre o que está vivo e o que está morto na obra do filósofo que escrevia à mesa do café de Flore, em Paris. Hoje, Sartre está esquecido, afirma Lapouge. O motivo parece simples: seu apego ao presente. Escreve Lapouge:

“Em vez de elaborar uma obra altiva, glacial e refugiada nas alturas impassíveis da filosofia ou da literatura, ele quis ser ao mesmo tempo o contemporâneo de todos os homens, o vigia, a testemunha e o combatente das lutas de seu tempo. Mas esse tempo se foi. Já não existe. Os combates da segunda metade do século 20 se extinguiram”.

No plano político, foram muitos os erros cometidos por Sartre nas causas em que se envolveu: o comunismo, a guerra fria, o apoio a Cuba. É claro que nessa época todos acreditávamos na Cuba de Fidel. A História, no entanto, se encarregaria de mostrar que os messianismos políticos sempre levam a becos sem saída. Mas Sartre foi também um dos pioneiros na defesa da descolonização e sua importância nesse processo ainda não foi devidamente dimensionada.

Mas a obra de Sartre que mais fundo me atingiu naqueles anos de formação foi A Náusea, romance que li com angústia e fascínio no longínquo ano de 1982. O livro é um libelo do existencialismo e retrata o cotidiano de Antoine de Roquentin, um sujeto que é meio intelectual, meio pária, um autodidata que passa o dia estudando tratados de filosofia na biblioteca pública de Paris, numa vida inútil e sem sentido. Por essa época, eu também vivia enfurnado na biblioteca pública de Porto Alegre, cidade em que vivia então.

A leitura de A Náusea provovou em mim um sentimento de repulsa, de náusea com aquele tipo de vida contemplativa, improdutiva. Quando fechei o livro já estava submerso numa profunda crise existencial, da qual, creio, ainda não me curei de todo. O livro provoca forte reação ao intelectualismo; saimos de sua leitura desejando uma profissão prática, feita de ação e não de reflexão. Passados tantos anos, penso que esta obra talvez tenha sido o estopim que me fez trocar o mediano ambiente do curso de Letras pela promessa de uma carreira autoral e com voz própria no jornalismo. Mas isso é outra história.

Sartre foi chamado muitas vezes de jornalista por seus inimigos, mas ele não temia falar para o grande público, numa época em que a função do intelectual ainda não estava restrita à academia, como hoje. Poucos desempenharam tão bem a função de intervenção na esfera pública como Sartre. Foi um intermediário cultural e através de sua obra muitos tiveram acesso às idéias e às questões mais relevantes na segunda metade do século 20, os chamados “Anos Sartre”. E isso não é pouco.
M.S.V.

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