Rumo ao Farol, de Virginia Woolf (1882-1941), é daquelas obras que expandem os limites da criação artística. A história de Mrs. Ramsey e de sua família, exemplar típico da aristocracia inglesa do início do século XX, queassiste a um processo irreversível de mudanças com a eclosão da Primeira Guerra, é contada a partir dos sentimentos e das sensações dos personagens, e não de suas ações. Esta viravolta narrativa será definidora para os rumos do romance no século 20.
Nesta pequena novela, os movimentos não ocorrem no espaço, mas na consciência das personagens. Detalhes vão se sobrepondo no material narrado de tal forma que geram no leitor uma sensação de movimento, mas que é apenas aparente. Quase nada acontece. O tempo da narração não está a serviço das ações narradas e a economia da obra se faz muito mais com interrupções e digressões do que com realidades objetivas, ou seja, fatos que se sucedem.
No início da história, a bela e enigmática Mrs. Ramsey está sentada à janela de uma ampla casa de veraneio, que seu marido, um renomado professor de Filosofia que faz carreira em Londres, aluga todos os anos para a família.
A narrativa se abre com uma cena das mais prosaicas: Mrs. Ramsey tece uma meia para o filho do caseiro do Farol, que será visitado pela família no dia seguinte, se o tempo estiver bom... Enquanto mede no próprio filho o tamanho da meia para saber se está pronta ou não, ela observa os demais convidados da casa de verão, um viúvo de meia-idade, uma pintora frívola etc. O episódio de abertura é absolutamente trivial, mas o leitor é surpreendido com os movimentos da consciência dos personagens.
Eis um pequeno trecho, revelador da existência aprisionada de Mrs. Ramsey: “Nunca ninguém pareceu tão triste. Amarga e negra, a meio caminho para baixo, na escuridão, no poço que ia da luz do sol às profundezas, talvez uma lágrima se formou; uma lágrima caiu; as águas oscilaram para lá e para cá, receberam-na e ficaram de repouso. Nunca ninguém pareceu tão triste”.
Em A meia marrom, ensaio de Erich Auerbach dedicado a este livro, e incluído na colatânea Mimesis, o crítico alemão afirma que o ponto de vista narrativo de Woolf instaura no leitor uma atmosfera tal que este é levado a crer que a única realidade objetiva que existe é o conteúdo da consciência das personagens do romance. O narrador criado por Woolf observa a protagonista não com “olhos sapientes (à moda de um narrador onisciente), mas com olhos duvidosos, interrogativos”, como se fosse uma personagem do próprio romance.
Na definição de Auerbach, os meios empregados neste romance correspondem ao que, na tradição moderna da literatura, é denominado de representação pluripessoal da consciência. Escreve Auerbach: “No caso de Virginia Woolf, os acontecimentos exteriores perderam por completo o seu domínio; servem para deslanchar e interpretar os interiores, enquanto que, anteriormente e em muitos casos ainda hoje, os movimentos internos serviam peponderantemente para a peparação e a fundamentação dos acontecimentos exteriores importantes” (Mimesis, Ed. Perspectiva, p.485).
Esta foi a grande viravolta narrativa empreendida por Virginia Woolf, cuja prosa é até hoje arrebatadora e inesquecível.
M.S.V.
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