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Literatura no Paquistão: só para inglês ver

Há certas literaturas que não podem se dedicar exclusivamente à fabulação, ao imaginativo, já que precisam se ocupar com o real. Com isso, acabam por tornar-se mais um documento da realidade do que um monumento da criação poética e romanesca. Isto costuma ocorrer em sociedades fechadas, em que a liberdade de expressão não tem livre circulação. Logo, a literatura acaba por assumir um papel de tribuna, papel esse que, em condições nornais, seria desempenhado pelo jornalismo.

Isso fica mais evidente quando se examinam os caminhos do romance neste século 21. Leio no Suplemento Prosa & Verso, do jornal O Globo, entrevista da escritora paquistanesa Kamila Shamsie, que tem seu romance Sombras marcadas (Ed. Alfaguara) recém-lançado no país.

Nascida em Karachi, no Paquistão, em 1973, seu livro (o primeiro a ser lançado no Brasil) aborda as marcas deixadas nos sobreviventes pela tragédia nuclear de Nagasaki, ocorrida durante a Segunda Guerra. Há analogias com acontecimentos decorrentes dos atentados de 11 de setembro, quando o Paquistão, juntamente com o Afeganistão, passou ao primeiro plano dos conflitos internacionais e, pela entrevista da autora, é possível conhecer seus pontos de vista sobre a função da literatura. “O trabalho da ficção e o da reportagem são complementares, me baseei muito no trabalho de jornalistas para fazer esse romance”, afirma Kamila Shamsie.

Destaco o trecho final da entrevista, bastante revelador da situação da literatura no Paquistão e do pouco contato dos leitores com os escritores paquistaneses que, a exemplo de Shamsie, escrevem em inglês.

“Os romancistas de língua inglesa atingem uma percentagem muito pequena da população paquistanesa: o governo nunca tomou conhecimento de nós (até agora!). É diferente com os escritores em urdu e em outras línguas com um alcance mais amplo, que historicamente sofreram com prisões e ameaças. Hoje, os jornalistas são os mais atingidos pela violência.”

Impossível não concluir que Kamila Shamsie cumpriria melhor sua função pública de escritora paquistanesa se escrevesse em idiomas que estivessem mais ao alcance da população, e não em inglês. Sua literatura, supostamente de denúncia,  só interessará realmente aos paquistaneses. No Ocidente e no Brasil, onde seu romance acaba de chegar, terá apenas um sabor exótico, secundário.
M.S.V.

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