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O autor enquanto sujeito comum

O autor não é um herói da literatura, nem esta tem o poder de salvar o mundo. Ao contrário, o que o autor precisa fazer é livrar-se deste papel que lhe foi incutido pelo sistema de produção literária. Só assim será possível ter “uma consciência lúcida do mundo”. As palavras são do escritor chinês Gao Xingjian, cujo texto “Ideologia e literatura”, foi lido pelo escritor em evento sobre literatura na Itália, ocorrido em junho de 2011, e publicado no Suplemento Sabático, de O Estado de S. Paulo, em 8 de agosto último.

O tema abordado por Gao Xingjian, as relações entre política e a arte de escrever, talvez não tenha tanta relevância no Brasil, mas faz sentido naquelas sociedades não plenamente livres, como é o caso da China. Mesmo assim, são férteis suas reflexões sobre a função do autor na atualidade.

Romancista e dramaturgo chinês que há anos vive na França, Xingjian ganhou o Prêmio Nobel em 2000. No Brasil, os leitores podem conhecê-lo por meio de seu romance A montanha da alma (Alfaguara, R$ 69,90, 2007). Para ele, são duas as ameaças que pairam sobre aqueles que se dedicam à criação literária: o alinhamento político-ideológico e “os modismos e o gosto das massas gerados pelo mercado”. Escreve Xingjian: “Esse tipo de literatura que transcende a ideologia e a política e transcende o benefício prático consiste num testemunho das condições existenciais da humanidade e da natureza humana”.

Quando a voz do autor transforma-se na voz do povo ou da nação, desvia-se de sua real vocação, que é ser a expressão da individualidade, escreve Xingjian. Mas o que me chamou particularmente a atenção foi sua concepção de autor enquanto indivíduo comum, longo da imagem do gênio ou do ente inspirado eu paira acima dos mortais. Vejam o trecho a seguir, que me lembrou a concepção de literatura presente na obra de Roberto Bolaño, sobre a qual, aliás, já escrevi aqui mesmo.

“O autor não é a encarnação da verdade e da dignidade, e suas fraquezas e defeitos pessoais são de fato tão grandes quanto os das pessoais comuns; aquilo que o diferencia é simplesmente o fato de ele poder purificar-se com a escrita da literatura”.

Bolaño certamente concordaria com a sentença, com exceção da parte final, sobre a suposta purificação trazida pelo ato de escrever. Vejo uma pequena armadilha ideológica nessa expressão, eco talvez da civilização chinesa, à qual pertence o autor, e que sempre foi profundamente mística.
M.S.V.

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