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A modernidade na periferia do país

Estive em Porto Alegre há algumas semanas e aproveitei para voltar à Casa de Cultura Mário Quintana. Quem entra nesse velho e imponente prédio da Rua da Praia, no centro da cidade, onde um dia funcionou o Hotel Majestic, e que já foi morada do poeta durante muitos anos, sente que está diante de algo muito maior do que um centro cultural.

Nos tempos áureos do Hotel Majestic, Porto Alegre era cenário da modernidade, de uma vida literária que incluía autores, tradutores, mercado editorial e leitores. Mário Quintana foi um desses personagens, mas havia muitos outros talentos circulando por lá.

Quando entrei numa sala que remetia à obra de Érico Veríssimo, pude ver algumas fotografias daquele que até hoje figura como um dos maiores nomes da literatura brasileira. As imagens retratavam as diferentes fses da carreira do autor de O tempo e o vento.

Todos os ícones que traduzem a figura de um escritor estão nessas fotos: Érico escrevendo, em viagem, brincando com o filho, posando ao lado de gatos, Érico à frente de sua máquina de escrever. É impressionante como Érico tinha consciência de sua imagem enquanto escritor. Não apenas escrevia, mas passava a imagem pública de que era alguém que vivia como escritor. Se pensarmos que sua carreira se desenvolveu nos anos 1960-70, surpreende que, numa Porto Alegre absolutamente periférica (não vai aí nenhum juízo de valor, mas antes uma crítica aos pontos de vista geograficamente centrais) havia um escritor que vivia enquanto tal. E que não deixava de registrar sua vida de escritor em imagens.

O fato, por si só, é revelador de que o ambiente que o cercava era autenticamente literário. Numa possível história da vida literária em Porto Alegre na segunda metade do século 20, Érico Veríssimo será um capítulo à parte, assim como Mário Quintana, a Editora do Globo, o Suplemento Literário do Correio do Povo. Enfim, são indicadores da modernidade no Sul do país.
M.S.V.

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