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Evocação do Danúbio

O rio Danúbio, em Viena.
Em suas memórias, Elias Canetti relembra o Danúbio de sua cidade natal, Ruschuk, na Bulgária, local onde viviam pessoas das mais diferentes nacionalidades, e onde era possível ouvir, num único dia, “sete ou oito idiomas diferentes”. Cidade portuária do Baixo Danúbio, Ruschuk atraía pessoas de toda parte e o rio era motivo de conversa e inspiração para os mais variados relatos e causos. “Havia histórias sobre aqueles anos em que o Danúbio congelou; sobre as viagens de trenó pelo gelo, até a Romênia [na outra margem do rio]; sobre os lobos famintos que assediavam os cavalos dos trenós”, escreve Canetti em A língua absolvida (Companhia das Letras, trad. Kurt Jahn).
Canetti lembra que, navegando rio acima, chegava-se a Viena, a capital da Europa Central, que era vista como o limite entre a Europa e o Império Otomano. “Quando alguém viajava para Viena, subindo o Danúbio, dizia-se que viajava para a Europa”, escreve Canetti.
Mas o Danúbio é muito mais do que as recordações “do rio que corre pela minha aldeia”. O Danúbio nasce na Alemanha e segue, serpenteando por entre florestas, montanhas e vales, em direção ao Mar Negro. Com uma bacia de 817.000 quilômetros quadrados que atravessa a Europa Central, está até hoje envolto em simbolismo histórico, político e cultural. “É o rio ao longo do qual se encontram, se entrecruzam e se misturam povos diversos. É o rio de Viena, de Bratislava, de Budapeste, de Belgrado”, escreve o estudioso italiano Claudio Magris.   
Magris nasceu em Triste, é professor de Literatura na Itália e tornou-se conhecido como estudioso do mito habsbúrgico na literatura austríaca. Seu Danúbio (Ed. Rocco, 1992, trad. de Elena Grechi e Jussara Ribeiro) é um alentado ensaio histórico-literário e bastante pessoal do rio que sintetiza como poucos a cosmovisão supranacional da Europa Central.
Mas o Danúbio que gostaria de evocar aqui, e em cujas margens estive numa certa tarde de sábado, na Marina de Viena, é um amálgama de povos e culturas, uma resistência aos nacionalismos, uma metáfora do hibridismo cultural, um rio que une a Europa à Ásia. E, ao contrário do que promete aquela valsa, não é azul; é cinza, por que também naquela tarde de sábado o céu estava cinza.

M.S.V.

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