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Em busca da Terra de Ninguém


No romance O cavaleiro da terra de ninguém o escritor Sinval Medina reconstrói a trajetória do português Cristóvão Pereira de Abreu, sertanista e comerciante que abriu o primeiro caminho terrestre ligando o Uruguai a São Paulo.



No distante século 18, havia uma extensa e despovoada faixa do território brasileiro que começava na Colônia do Sacramento, hoje Uruguai, e chegava até os campos da Vila de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, ou apenas Laguna, como chamamos hoje. Nesta vasta e solitária paisagem, viviam “sem lei nem rei” minuanos, tapes, jesuítas, castelhanos, buenairenses e outros tipos erráticos, todos disputando um pedaço desta vasta, rica e desabitada parte do Brasil, chamada muito apropriadamente de Terra de Ninguém.

Este foi o cenário escolhido pelo escritor Sinval Medina para contar as aventuras do cavaleiro português Cristóvão Pereira de Abreu, que ficou conhecido como Rei dos Tropeiros, e que encarou o desafio de abrir um caminho por terra ligando as barrancas orientais do rio Uruguai à vila de Sorocaba, passando pelo litoral sul do país, pela pequena vila de Laguna e os planaltos de Curitiba.

Naquele tempo, o reino de Portugal tinha urgência em acelerar a ocupação daquele vasto território situado, de um lado, entre Sacramento e Laguna e, de outro, entre o rio Uruguai e o oceano Atlântico. A pequena Colônia de Sacramento figurava então como o último baluarte da coroa lusitana, mas vivia constantes ameaças dos vizinhos castelhanos, que se recusavam a reconhecer, como determinava o tratado de então, o Mar da Prata como legítima fronteira meridional do Brasil.

A história mostrou que esse limite jamais iria se impor. Até porque, Portugal estava muito ocupado protegendo outras regiões deste imenso país, como os portos do Recife, da Bahia, do Rio de Janeiro e de Santos, “por onde escoam o ouro, o açúcar e outras riquezas do Brasil, do que com a conquista e povoamento desta Terra de Ninguém”, escreve Sinval Medina.

Mas, ao contrário do que parece, este não é um livro de história e sim um romance de época, como o próprio autor gosta de definir. “Sou rotulado sempre como alguém que faz romance histórico, mas prefiro chamar o que faço de romance de época”, disse Sinval certa vez num debate.

Ao misturar personagens de ficção com figuras e lugares históricos, O cavaleiro da terra de ninguém atrai o leitor pelo tom localista, porém repleto de engenho, de sua linguagem.

Este romance, ou biografia romanceada, resgata de modo brilhante o linguajar de uma época passada, o Brasil colonial, valendo-se de um estilo que busca resgatar as múltiplas sonoridades da época.

Um traço marcante do estilo de Sinval Medina introduz as personagens na ação sem o tradicional uso do travessão, como na passagem a seguir, em que dialogam o próprio Cristóvão e seu sogro, Dom Rafael Amorim: “É de sua parte decisão feita, meu genro? Sim, senhor. Se tudo correr bem, parto dentro de duas semanas. E gostaria de fazê-lo com sua bênção e consentimento. Pensou bem no passo que vai dar? Outra coisa não tenho feito nos últimos tempos, senhor”.

O diálogo prossegue, sem qualquer marca, como se fosse relato ou crônica histórica. Em seguida, no mesmo parágrafo, entra o narrador em terceira pessoa, onipresente como num clássico romance realista: “No fundo, pensava ele próprio em fazer tal proposta. Partindo do velho Amorim, o arranjo fica ainda mais a jeito”.

Sobre essa marca inconfundível de seu estilo, assim escreveu a jornalista e professora da Universidade de São Paulo (USP), e também escritora, Cremilda Medina, em artigo de 2020 para o Jornal da USP: “há muito abandonou em seus textos literários aspas e travessões. Nem precisa desses distanciamentos de autor, porque ele se mete nos narradores e nos personagens, o parágrafo a eles pertence e só o ponto marca, na pontuação literária (não gramatical) a inflexão e mudança de vozes”.

Estilo que ele construiu ao longo de mais de cinco décadas de dedicação à literatura. Nascido em Porto Alegre em 1943, Sinval Medina vive em São Paulo desde 1971. Estreou na ficção em 1980 com Liberdade Condicional e, desde então, não parou mais: é autor de quinze romances, além de livros de poesia para crianças. Seu livro Tratado da altura das estrelas, de 1999, conquistou o Prêmio Zaffari Bourbon de Literatura.

Romance que retrata os desafios e os conflitos da povoação desta parte sul do país, em especial os estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, O cavaleiro da Terra de Ninguém é, acima de tudo, uma narrativa mirabolante, que prende o leitor pela fluência da linguagem coloquial e pela trama envolvente de personagens de carne e osso. Enfim, um romance fundacional que diz muito sobre as origens da terra, da cultura e dos costumes daqueles que habitam a região sul do Brasil.
M.S.V.

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