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Carpeaux e o método

“Um professor de matemática – é Lichtenberg que conta a história – explicou certa vez aos estudantes um teorema, acrescentando: ‘Existe uma excelente demonstração desse teorema, mas não tenho muito tempo e não me sinto hoje bem disposto. Vocês me conhecem. Sabem que sou fidedigno. Juro que o teorema é verdadeiro. E basta’.
Gostaria de empregar esse mesmo ‘método’ de demonstração, jurando que O trapicheiro, o primeiro volume do roman-fleuve de Marques Rebelo, é muito bom; que é uma obra de valor extraordinário: e basta. Tempo, para demonstrá-lo, me sobra e disposição não me falta. Mas há vários outros motivos para justificar minha atitude axiomática. Antes de tudo: em que pesem os métodos científicos de crítica (dos quais aprovo muitos), não acredito que o valor de uma obra de arte possa jamais ser matematicamente demonstrado. A ciência não admite julgamentos de valor (v. Max Weber e Scheler); o desconhecimento dessa verdade leva os adeptos da crítica científica a prometer coisas que, depois, não sabem cumprir, fazendo crítica exatamente assim como os ‘impressionistas’ menos científicos. A mentalidade científica prefere basear suas explicações na descrição dos fatos; e basta”.

O trecho acima é uma verdadeira iluminação sobre o tipo de relação que um crítico literário deve estabelecer com as obras que comenta. É também representativo da concepção de crítica de Otto Maria Carpeaux. Foi extraído de “Suma de época”, artigo incluído na coletânea Livros na mesa, de 1960.
M.S.V.

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