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Dois poemas de Quintana

No próximo dia 5 de maio completam-se 15 anos desde a morte do poeta Mario Quintana (1906-1994). Por acreditar que a releitura de um livro é a maior homenagem que se pode prestar a um autor, releio Esconderijos do tempo.

Publicado em 1986, quando o autor já tinha uma trajetória consolidada no contexto da poesia brasileira, o volume traz 49 poemas bastante reveladores tanto do estilo quanto das temáticas que marcaram a obra poética de Quintana.

Como nos dois poemas transcritos a seguir, extraídos da belíssima Coleção Mario Quintana, organizada pela crítica literária Tânia Franco Carvalhal para a Editora Globo.

Ah, mundo...
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
-- rotos e felizes! –
por essas estradas do mundo.

Preparativos para a viagem
Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
Se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
-- a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face do Senhor...
os próprios Anjos te invejarão.

Aqui estão a ironia e o humor corrosivo diante da morte e o gosto pelas situações do cotidiano, sempre marcadas por um tratamento que busca fundir o real com o surreal. A poesia de Quintana está repleta de passadismo e de nostalgia.

Seu livro de estréia, A rua dos cataventos, foi mal recebido pela crítica, pois era feito de sonetos, numa época em que o Modernismo era hegemônico e o verso livre vigorava como o novo padrão de composição poética.

Mas não se pode ler a poesia de Quintana a partir dos pressupostos modernistas. Outros critérios poéticos precisam ser instaurados. Por isso a obra do poeta gaúcho necessita de uma releitura.
M.S.V.

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