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O poema e a realidade

Quando se é jovem, e os sonhos ainda não passaram pelo crivo da realidade, nem os projetos foram postos à prova, então lemos poemas e nos emocionamos com eles.

Mas quando os barcos – bêbados de desejo – são arrastados por contra-ventos e marés e ameaçam bater em terras desconhecidas...

Quando já não se imagina que, da leitura de um simples soneto, poderá haver emoção, o surpreendente acontece. Uma lágrima solitária verte e escorre pelo rosto vincado por tantas tardes e manhãs, “que enchem de cinza o coração da gente”.

O que mais pedir de um poema? Basta que nos chacoalhe com seu cântico de certezas. Como na emoção despertada pela leitura do soneto XVI de A rua dos cataventos, de Mario Quintana.
M.S.V.

“Triste encando das tardes borralheiras
Que enchem de cionza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...

A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus... o frio que a pobrezinha sente!

Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...

Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...

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