Pular para o conteúdo principal

A cultura do romance


Nenhum outro gênero renega tanto sua própria natureza quanto o romance. Desacreditado, quase sempre em crise, ele atravessou os séculos e sobreviveu a ataques de todos os tipos, do Estado, da Religião e até da própria crítica, que por mais de uma vez lhe decretou a morte ou o acusou de falsificar a realidade.

O fato é que, desde meados do século XIX, quando o gênero se fixou entre os leitores das metrópoles européias, com os ingleses Defoe e Fielding, o romance construiu mais do que uma história: há mesmo uma cultura do romance manifesta em certas constantes, como o individualismo, o mito do herói, a formação da personalidade (bildungsroman), a interioridade, o sujeito, o narrador, a viagem.

Esses aspectos e muitos outros estão contemplados na gigantesca e fascinante coleção O Romance, coordenada pelo crítico italiano Franco Moretti, cujo primeiro volume (A cultura do Romance) foi lançado recentemente no país (Cosac Naify, 1.120 págs., trad. de Denise Bottman, R$ 130). Organizada em cinco volumes, a coleção conta com 178 colaboradores de diversas nacionalidades. Do Brasil estão Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima.

A idéia do organizador é dissecar o gênero romance a partir de uma visão multidisciplinar. Para isso, foram convidados a colaborar não só especialistas em literatura, mas de áreas como antropologia, sociologia, filosofia, história e até geografia.

O projeto de Moretti aspira a ser muito mais do que uma história da literatura (afinal, quantas já temos?). Seu desejo é, sobretudo, ser uma reação ao close reading (a leitura fechada da obra) e ao processo de hierarquização de obras e valores feito pela ideia de cânone (leia-se Harold Bloom). Nada mais necessário para os dias de hoje.
M.S.V.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"O cacto", de Bandeira

Houve tempo em que a leitura de poemas era para mim um hábito quase diário. Tenho a impressão de que a poesia é mais necessária quando somos jovens e estamos ainda em busca de um caminho. Entre os poetas brasileiros, Manuel Bandeira talvez tenha sido o autor ao qual mais retornei para releituras. E não havia mediação crítica nessas leituras. Só muito mais tarde, já aluno de Teoria Literária na USP, é que acrescentei à minha experiência de leitura as análises do crítico literário e professor Davi Arrigucci Jr. Foi num de seus cursos que conheci O cacto , um pequeno poema que o professor Davi analisava em aula. De seu método, guardei para sempre a atitude que todo leitor deve ter diante da poesia, antes mesmo da interpretação: trata-se da escavação filológica, procedimento aberto por Erich Auerbach. Publicado em 1925, O cacto impressiona pela beleza áspera que exala de seus versos. “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte constrangido pelas serpentes, Ugoli

Em busca da Terra de Ninguém

No romance O cavaleiro da terra de ninguém o escritor Sinval Medina reconstrói a trajetória do português Cristóvão Pereira de Abreu, sertanista e comerciante que abriu o primeiro caminho terrestre ligando o Uruguai a São Paulo. No distante século 18, havia uma extensa e despovoada faixa do território brasileiro que começava na Colônia do Sacramento, hoje Uruguai, e chegava até os campos da Vila de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, ou apenas Laguna, como chamamos hoje. Nesta vasta e solitária paisagem, viviam “sem lei nem rei” minuanos, tapes, jesuítas, castelhanos, buenairenses e outros tipos erráticos, todos disputando um pedaço desta vasta, rica e desabitada parte do Brasil, chamada muito apropriadamente de Terra de Ninguém. Este foi o cenário escolhido pelo escritor Sinval Medina para contar as aventuras do cavaleiro português Cristóvão Pereira de Abreu, que ficou conhecido como Rei dos Tropeiros, e que encarou o desafio de abrir um caminho por terra ligando as barrancas orientais

A história de uma família numa coleção de netsuquês

O Palácio Ephrussi, na Ringstrasse, em Viena Transformar em livro a história de uma família é uma idéia cujos resultados costumam chatear o leitor, que em geral se vê diante de páginas que desfilam elogios e que só constróem imagens oficiais dos biografados. Não é o que ocorre com A lebre com olhos de âmbar , de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca), que, conta a história de uma coleção de miniaturas feitas de marfim e madeira que pertenceu aos Ephrussis, uma família originária de Odessa, na Rússia, que se estabeleceu na França e na Áustria no final do século 19. Os Ephrussis eram de origem judaica e fizeram fortuna no setor financeiro, ao mesmo tempo em que revelaram-se grandes colecionadores de obras de arte. Ao herdar a coleção de miniaturas, o autor, Edmund de Waal (desconhecido por aqui, mas parece que e reconhecido lá fora como ceramista) decide mergulhar na história para resgatar a trajetória de seus avós. Parte para Paris e Viena em busca de documentos de seus antepassad