Pular para o conteúdo principal

As razões da crítica

A explicação do texto literário e a análise científica da obras artísticas quase sempre são encaradas com suspeita e desqualificadas como atividade secundária. Os motivos de tais reações – que envolvem também a figura do crítico – estão ligados à reivindicação da autonomia da literatura, como se esta somente comportasse explicações literárias. Outra razão repousa na idéia de transcendência da obra, de algo que não pode ser compreendido ou decifrado pelo conhecimento racional.

Este motivo está na base tanto do conhecido livro escrito pelo escritor Marcel Proust contra o método do até então maior nome da crítica, o francês Saint-Beuve – Contra Saint-Beuve era o título do libelo de Proust --, quanto do surgimento, nos anos 1960-70, de uma geração de críticos-escritores, cujo principal expoente foi Roland Barthes, para quem a atividade crítica era também criação artística.

Isso sem falar no enigmático Monsieur Teste, personagem criado pelo poeta e ensaísta Paul Valéry, que, depois de produzir páginas e páginas, decide fazer uma ardente fogueira de seus escritos.

Será mesmo que a análise científica da literatura está condenada a destruir a especificidade do elemento literário e a afastar os leitores do prazer da leitura? Por que tantos críticos e escritores fazem questão de proclamar a irredutibilidade da criação, esquecendo-se de que a arte também é uma forma de conhecimento?

Pois entre os argumentos em favor da análise critica está o de Pierre Bourdieu que, na Introdução às Regras da Arte (SP: Companhia das Letras, 1996, p.11-16, trad. Maria Lucia Machado) escreve que tamanha resistência à análise, tanto por parte dos criadores quanto daqueles que pretendem se identificar com eles em prol de uma leitura “criativa” e não racional, na verdade omite o desejo de ver seu gênio decifrado, e isso seria uma agressão ao narcisismo do criador. Eis o belo e contundente trecho de Bourdieu:

“O amor pela arte, como o amor, mesmo e sobretudo o mais louco, sente-se baseado em seu objeto. É para se convencer de ter razão (ou razões) para amar que recorre com tanta freqüência ao comentário, essa espécie de discurso apologético que o crente dirige a si próprio e que, se tem pelo menos o efeito de redobrar sua crença, pode também despertar e chamar os outros à crença. É por isso que a análise científica, quando é capaz de trazer à luz o que torna a obra de arte necessária, ou seja, a fórmula formadora, o princípio gerador, a razão de ser, fornece à experiência artística, e ao prazer que a acompanha, sua melhor justificação, seu mais rico alimento”.

Contrariando as muitas vozes que se levantam contra a crítica, talvez seja necessário, hoje como sempre, escrever um libelo a favor da interpretação, a favor de Saint-Beuve.
M.S.V.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"O cacto", de Bandeira

Houve tempo em que a leitura de poemas era para mim um hábito quase diário. Tenho a impressão de que a poesia é mais necessária quando somos jovens e estamos ainda em busca de um caminho. Entre os poetas brasileiros, Manuel Bandeira talvez tenha sido o autor ao qual mais retornei para releituras. E não havia mediação crítica nessas leituras. Só muito mais tarde, já aluno de Teoria Literária na USP, é que acrescentei à minha experiência de leitura as análises do crítico literário e professor Davi Arrigucci Jr. Foi num de seus cursos que conheci O cacto , um pequeno poema que o professor Davi analisava em aula. De seu método, guardei para sempre a atitude que todo leitor deve ter diante da poesia, antes mesmo da interpretação: trata-se da escavação filológica, procedimento aberto por Erich Auerbach. Publicado em 1925, O cacto impressiona pela beleza áspera que exala de seus versos. “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte constrangido pelas serpentes, Ugoli

Em busca da Terra de Ninguém

No romance O cavaleiro da terra de ninguém o escritor Sinval Medina reconstrói a trajetória do português Cristóvão Pereira de Abreu, sertanista e comerciante que abriu o primeiro caminho terrestre ligando o Uruguai a São Paulo. No distante século 18, havia uma extensa e despovoada faixa do território brasileiro que começava na Colônia do Sacramento, hoje Uruguai, e chegava até os campos da Vila de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, ou apenas Laguna, como chamamos hoje. Nesta vasta e solitária paisagem, viviam “sem lei nem rei” minuanos, tapes, jesuítas, castelhanos, buenairenses e outros tipos erráticos, todos disputando um pedaço desta vasta, rica e desabitada parte do Brasil, chamada muito apropriadamente de Terra de Ninguém. Este foi o cenário escolhido pelo escritor Sinval Medina para contar as aventuras do cavaleiro português Cristóvão Pereira de Abreu, que ficou conhecido como Rei dos Tropeiros, e que encarou o desafio de abrir um caminho por terra ligando as barrancas orientais

A história de uma família numa coleção de netsuquês

O Palácio Ephrussi, na Ringstrasse, em Viena Transformar em livro a história de uma família é uma idéia cujos resultados costumam chatear o leitor, que em geral se vê diante de páginas que desfilam elogios e que só constróem imagens oficiais dos biografados. Não é o que ocorre com A lebre com olhos de âmbar , de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca), que, conta a história de uma coleção de miniaturas feitas de marfim e madeira que pertenceu aos Ephrussis, uma família originária de Odessa, na Rússia, que se estabeleceu na França e na Áustria no final do século 19. Os Ephrussis eram de origem judaica e fizeram fortuna no setor financeiro, ao mesmo tempo em que revelaram-se grandes colecionadores de obras de arte. Ao herdar a coleção de miniaturas, o autor, Edmund de Waal (desconhecido por aqui, mas parece que e reconhecido lá fora como ceramista) decide mergulhar na história para resgatar a trajetória de seus avós. Parte para Paris e Viena em busca de documentos de seus antepassad