Os poucos leitores deste blog vão se perguntar sobre os motivos deste novo post sobre Roberto Bolaño. Nos últimos vinte anos, poucos escritores me incomodaram tanto quanto o autor de Os detetives selvagens. Não se pode falar de narrativas ficcionais contemporâneas sem fazer referência ao escritor chileno.
Em Estrela distante (Companhia das Letras, 2009, trad. de Bernardo Azjenberg), há um personagem que aparece quase no final do livro e que é uma espécie de porta-voz da enigmática “seita dos escritores bárbaros”. Chama-se Raoul Delorme, um ex-soldado que, em 1968, trabalhava como zelador num prédio do centro de Paris.
Enquanto a capital francesa era tomada pelas barricadas do desejo e da revolução por estudantes que mais tarde se tornarão os futuros intelectuais e romancistas do país, Delorme tranca-se em seu cubículo de zelador e começa a dar forma à sua nova literatura. Essa literatura está amparada, segundo ele, em dois procedimentos simples: confinamento e leitura.
A seita dos escritores bárbaros defende uma “assimilação real” dos clássicos. Trata-se de “uma aproximação corporal que rompia com todas as barreiras impostas pela cultura, a academia e a técnica”, escreve Delorme. Uma aproximação corporal que pede aos seus seguidores que façam todas as suas necessidades fisiológicas sobre as páginas dos clássicos da literatura. Eis o trecho (pág. 126), que sintetiza o manifesto dos escritores bárbaros:
“Era preciso se fundir com as obras-primas. Isso se obtinha de uma forma bastante curiosa: defecando sobre as páginas de Stendhal, assoando o nariz com as páginas de Vitor Hugo, masturbando-se e espalhando o esperma sobre as páginas de Gautier ou Banville, vomitando nas páginas de Daudet, urinando sobre as páginas de Lamartine, cortando-se com lâminas de barbear e fazendo respingar o sangue nas páginas de Balzac ou Maupassant, submetendo os livros, enfim, a um processo de degradação que Delorme chamava de humanização”.
O que quer Bolaño com isso? Penso que o autor chileno lança um veemente grito de protesto contra o sistema literário, com seus mecanismos de consagração e seus prêmios, e contra todos os agentes que compõem esse círculo. Niilista, a obra de Bolaño investe contra a crença na literatura, na crítica e na própria tradição literária.
Na voz de seu personagem Delorme, Bolãno quer “uma literatura escrita por gente alheia à literatura”. Para ele, “a revolução ainda pendente da literatura significará, de alguma forma, sua propria abolição”. Seu desejo é uma poesia “feita por não poetas e lida por não leitores”.
Segue a trilha de M. Teste, o personagem criado por Paul Valèry, e busca dessacralizar a literatura. Que outra ideia pode haver na metáfora dos excrementos humanos sobre as páginas dos clássicos? Bolaño não vê qualquer nobreza no livro ou na literatura. “Não mergulharei nunca mais no mar de merda da literatura”, escreve.
Estamos diante de um anti-Borges por excelência. Não existe uma tradição para ser venerada, nem clássicos para serem cultuados ou reescritos. Pierre Menard, M. Teste: a que trilha pertence a literatura de Bolaño?
M.S.V.
Em Estrela distante (Companhia das Letras, 2009, trad. de Bernardo Azjenberg), há um personagem que aparece quase no final do livro e que é uma espécie de porta-voz da enigmática “seita dos escritores bárbaros”. Chama-se Raoul Delorme, um ex-soldado que, em 1968, trabalhava como zelador num prédio do centro de Paris.
Enquanto a capital francesa era tomada pelas barricadas do desejo e da revolução por estudantes que mais tarde se tornarão os futuros intelectuais e romancistas do país, Delorme tranca-se em seu cubículo de zelador e começa a dar forma à sua nova literatura. Essa literatura está amparada, segundo ele, em dois procedimentos simples: confinamento e leitura.
A seita dos escritores bárbaros defende uma “assimilação real” dos clássicos. Trata-se de “uma aproximação corporal que rompia com todas as barreiras impostas pela cultura, a academia e a técnica”, escreve Delorme. Uma aproximação corporal que pede aos seus seguidores que façam todas as suas necessidades fisiológicas sobre as páginas dos clássicos da literatura. Eis o trecho (pág. 126), que sintetiza o manifesto dos escritores bárbaros:
“Era preciso se fundir com as obras-primas. Isso se obtinha de uma forma bastante curiosa: defecando sobre as páginas de Stendhal, assoando o nariz com as páginas de Vitor Hugo, masturbando-se e espalhando o esperma sobre as páginas de Gautier ou Banville, vomitando nas páginas de Daudet, urinando sobre as páginas de Lamartine, cortando-se com lâminas de barbear e fazendo respingar o sangue nas páginas de Balzac ou Maupassant, submetendo os livros, enfim, a um processo de degradação que Delorme chamava de humanização”.
O que quer Bolaño com isso? Penso que o autor chileno lança um veemente grito de protesto contra o sistema literário, com seus mecanismos de consagração e seus prêmios, e contra todos os agentes que compõem esse círculo. Niilista, a obra de Bolaño investe contra a crença na literatura, na crítica e na própria tradição literária.
Na voz de seu personagem Delorme, Bolãno quer “uma literatura escrita por gente alheia à literatura”. Para ele, “a revolução ainda pendente da literatura significará, de alguma forma, sua propria abolição”. Seu desejo é uma poesia “feita por não poetas e lida por não leitores”.
Segue a trilha de M. Teste, o personagem criado por Paul Valèry, e busca dessacralizar a literatura. Que outra ideia pode haver na metáfora dos excrementos humanos sobre as páginas dos clássicos? Bolaño não vê qualquer nobreza no livro ou na literatura. “Não mergulharei nunca mais no mar de merda da literatura”, escreve.
Estamos diante de um anti-Borges por excelência. Não existe uma tradição para ser venerada, nem clássicos para serem cultuados ou reescritos. Pierre Menard, M. Teste: a que trilha pertence a literatura de Bolaño?
M.S.V.
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