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José Castello, ou a crítica enquanto crônica

 
Sempre fui um leitor voraz de crítica e tenho uma predileção especial por estudar os modos e as manhas deste gênero tão necessário quanto suspeito. 

Minhas leituras sempre incluíram os críticos ao lado dos ficcionistas, e creio mesmo que a literatura e a arte não podem dispensar esse antigo trabalho da interpretação.

Dia desses, ao escrever sobre as razões da crítica, procurei explicar os motivos que levam tantos autores – e mesmo o público leitor – a encarar com suspeita a explicação do texto literário e a análise científica de obras artísticas.

Outro fator de resistência à crítica pode estar na idéia de transcendência da obra, de algo que não pode ser compreendido ou decifrado pelo conhecimento racional. Isso sem falar na linguagem da crítica, que se tornou especializadíssima em função de sua institucionalização e acadêmica por contingências financeiras. Afinal, do que mais poderá se manter um crítico hoje que não vive de jornalismo, senão do emprego de professor?

O fato é que a crítica de linhagem acadêmica acabou se transformando num modelo hegemônico, deixando em segundo plano a figura do velho crítico literário, aquele que nasceu nos rodapés dos jornais e que, além de erudito, escrevia para um púlbico amplo.

A consequência mais visível dessa virada nos rumos da crítica está na linguagem, que se tornou hermética e permeada de jargões, já que os críticos escrevem para seus pares. Sempre penso nessas questões quando estou diante de um texto crítico. Mais do que o método, preocupa-me o estilo e a voz autoral presente nas manifestações de gosto que devem estar na base de toda análise e julgamento de uma obra.

Pois um dos críticos em atividade que mais admiro é José Castello, que assina uma coluna semanal no Suplemento Prosa & Verso, no jornal O Globo. Pois não é que sempre que leio suas críticas tenho a impressão de estar lendo uma crônica? Em José Castello não temos o tom professoral, de certezas e demonstrações teóricas, mas um clima de conversa com o leitor, num texto que mistura digressões e lembranças. Tais elementos parecem fazer o texto descambar para uma conversa fiada, mas, quando menos esperamos, nos conduzem a uma chave de leitura da obra em questão. Nesse ponto, já estamos definitivamente convencidos de seus argumentos.

Os traços de crônica são mais visíveis quando Castello escreve em primeira pessoa, como na crítica de 16 de outubro último: “Sou um leitor sentimental. Quando leio, guio-me por sentimentos vagos, que me ficaram de leituras antigas e de impressões resistentes, e que, de alguma maneira, formam o leitor que sou.” Em outra crítica, ele inicia lembrando de seu falecido tio...

Sempre que travou contato com determinado autor cuja obra agora comenta ou já o entrevistou em determinada época, Castello faz questão de informar o leitor sobre as circunstâncias do fato, o que dá ainda mais transparência e credibilidade ao seu oficio.

Mais do que certezas argumentativas e precisões metodológicas, a crítica de José Castello é feita de sentimento, de impressões e de leitura. Um crítico impressionista, como diria Afrânio Coutinho em outros tempos. Pois a literatura precisa é de críticos assim: crítica também se faz com sentimento.
M.S.V.

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