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Aforismos de Franz Kafka


Os aforismos transcritos a seguir podem ser considerados uma pequena raridade literária. Foram traduzidos pelo crítico austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e publicados em dezembro de 1943 na extinta Revista do Brasil, do Rio de Janeiro. Carpeaux foi um dos críticos mais produtivos da história da literatura brasileira. Durante quatro décadas, escreveu e publicou num ritmo quase semanal. Seus artigos, cheios de erudição e polêmica, foram muito lidos até uma determinada época, quando a crítica de feição literária ainda predominava sobre as demais modalidades de interpretação da obra literária.

O tcheco Franz Kafka (1883-1924) era um dos autores preferidos de Carpeaux. Quando morreu, em 1978, no Rio de Janeiro, Carpeaux ainda guardava um exemplar da primeira edição de O Processo. Há alguns anos, quando fazia uma pesquisa no acervo do crítico que hoje pertence à Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, pude ver e tocar nessa rara primeira edição de O processo. Agora encontro esses aforismos de Kafka traduzidos por Carpeaux em 1943. De um total de vinte, transcrevo a seguir dez deles.
M.S.V.

"Pelo próprio ato de viver, ele embartaça o seu caminho. O embaraço, porém, dá-lhe a prova de que ele vive".

"Certas pessoas negam a miséria, referindo-se ao Sol; ele nega o sol, referindo-se à miséria".

"O motivo de o juízo da posteridade sobre o indivíduo ser mais certo do que o juízo dos contemporâneos, encontra-se no próprio morto. O indivíduo desenvolve-se só depois da morte, quando sozinho. A morte é para o indivíduo o que é a tarde de sábado para o limpador de chaminés: lava-o da fuligem".

"Todas as virtudes são individuais; todos os vícios são sociais".

"Ele tem dois adversários: o primeiro combate-o por trás, da Origem; o outro barra-lhe o caminho para a frente. Ele luta contra os dois. Para dizer a verdade, o primeiro, propulsando-o, ajuda-o contra o outro, e, do mesmo modo, o outro, repelindo-o, ajuda-o contra o primeiro. Mas isto só em teoria. Pois não há só os dois adversários: existe também ele próprio – e quem conhece as próprias intenções? É o seu sonho que num momento inesperado – e deveria ser uma noite, tão escura como nunca houve igual – abandona o campo de batalha, elevado que foi, graças à sua experiência na luta, à condição de juiz dos dois adversários".

"O verdadeiro caminho é o caminho sobre uma corda, estendida não no alto, mas no chão. Corda que parece destinada antes a fazer tropeçar que a ser atravessada".

"Há dois pecados capitais, dos quais derivam todos os outros: impaciência e relaxamento. Por efeito da impaciência, foi o homem expulso do paraíso; por efeito do relaxamento, lá não voltará. Mas... também pode ser que não volte por efeito da impaciência".

"O momento decisivo da evolução humana é permanente. Por isso, têm razão os movimentos de espírito revolucionários, que declaram sem efeito todo o passado: nada ainda aconteceu".

"Um dos mais eficientes meios de sedução do Demônio é a provocação à luta. É como a luta com mulheres, que acaba na cama".

"Leopardos irromperam no templo e esgotaram os vasos sagrados; isto se repetiu sempre. Enfim, é possível imaginá-lo, torna-se parte da liturgia".

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