Você abre o livro e começa a leitura de um romance. Depois de umas trinta e poucas páginas, a leitura pega ritmo e você é fisgado pela trama. Mas eis que, ao virar a página para iniciar novo capítulo, percebe que já leu aquelas frases. Mais: parágrafos inteiros se repetem. Só então descobre que o livro veio com defeito: foi encadernado com os mesmos cadernos, as mesmas 32 páginas do início ao fim. Retorna à livraria onde o comprou e expõe o defeito do livro. Só então é informado de que o romance cuja leitura iniciada não era Se um viajante numa noite de inverno, do italiano Italo Calvino (deste, só havia a folha de rosto), mas Distanciando-se de Malbork, do polonês Tadeo Bazakbal.
Agora você tem dois problemas: quer o livro de Calvino que julgou comprar e deseja também o de Bazakbal, pois foi fisgado pela história. Mais adiante vai descobrir que a editora misturou não só esses dois romances, mas outros, como Debruçado na borda da costa escarpada e Sem temer a vertigem e o vento, além de outros oito romances, a maioria de escritores desconhecidos e pertencentes a literaturas consideradas menores, como o cimério. E assim o leitor vê-se envolvido nesta trama de originais trocados, traduções invertidas, leituras atravessadas e manuscritos inacabados.
Em Se um viajante numa noite de inverno, Italo Calvino escreve um romance para falar de questões como originalidade, autoria, processo de produção do livro e as disputas que envolvem a própria tradição literária. A narrativa é construída em dois planos: o do leitor às voltas com um livro que mistura diferentes histórias e as histórias desses romances misteriosos, que vão se acumulando diante do leitor, que se vê fisgado por essas histórias inacabadas.
M.S.V.
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