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Presença de Moacyr Scliar


Assim que soube da morte de Moacyr Scliar, ocorrida no último domingo em Porto Alegre, fui às estantes procurar seus livros. Para minha surpresa, constatei que o que possuo em casa está longe de ser representativo dos mais de oitenta livros publicados pelo escritor em sua fértil trajetória literária. Passei então a folhear as páginas de O carnaval dos animais, de 1968, reunião de contos que ele considerava seu primeiro livro de fato (antes, havia publicado Histórias de um Médico em Formação, em 1962, ano em que se formou em Medicina, e Tempo de espera, de 1964, com Carlos Stein).

Em seguida examinei um exemplar de A orelha de Van Gogh, autografado e com dedicatória datados de 1989. Este livro de contos não foi o primeiro de Scliar publicado por uma editora de fora do Rio Grande do Sul, mas certamente foi aquele que deu novo fôlego e projeção nacional para sua carreira. Além de extensa e variada, a obra de Moacyr Scliar é cheia de surpresas, como o até hoje pouco conhecido Os Voluntários, de 1979, ou o comovente O exército de um homem só, de 1973. Mas foi com O centauro no jardim, de 1980, e A estranha nação de Rafael Mendes, de 1983, que Scliar se firmou como um dos renovadores da narrativa urbana na literatura brasileira.

Logo percebi que os poucos livros de Moacyr Scliar presentes em minha biblioteca não combinavam com a forte presença do escritor em minha memória e na minha formação de leitor. Lembrei então que vários de seus livros foram lidos de empréstimo da Biblioteca Pública de Porto Alegre, antes e durante os anos de faculdade. Mas, aos poucos, fui constatando que esta pesença era fruto de um outro fator: a proximidade que Scliar sempre buscou com os leitores, principalmente os da nova geração. E mais: provinha de uma espécie muito particular de amizade que um escritor constrói com seus leitores ao longo da vida, ao publicar, ano após ano, suas histórias. Ainda que soubesse que dificilmente fosse ler tal livro recém lançado, ver um novo lançamento de Scliar nas livrarias ou nas ruas sendo carregado por outros leitores servia de conforto e dava sentido às nossas vidas.

Na década de oitenta, Moacyr Scliar era uma presença constante nos círculos culturais e educacionais de Porto Alegre. Ele visitava com frequência escolas e universidades para falar de seus livros e da sempre cobrada relação da Medicina, profissão que exercia durante o dia, com a literatura. Lembro que no primeiro ano do curso de Jornalismo, na PUC, o professor nos obrigou a ler a pequena novela A festa no castelo, e, numa certa noite, Scliar foi até nossa sala de aula para conversar com os alunos. Era assim, simples, próximo, sem espetacularização, sem mídia.

Mas é claro que, num outro sentido, havia mídia. Afinal, um escritor precisa ir em busca de seu público, e Scliar fazia isso muito bem: além de publicar com regularidade, colaborava intensamente com jornais, participava de eventos, palestras, autógrafos etc. Enfim, garimpava e alimentava lenta e continuamente seu público leitor. Ao contrário de Raduan Nassar, o escritor que abriu mão da vida literária, Moacyr Scliar não só acreditava na literatura, mas principalmente, no leitor e em sua formação ao longo do tempo.

Na década de noventa, ele se tornou um escritor conhecido nacionalmente. Antes disso, aliás, já fora publicado em vários países e já era reconhecido lá fora como um de nossos maiores escritores em atividade.

Com sua morte, os necrológios habituais falam de sua trajetória, da falta que fará na literatura brasileira, do seu legado, de suas influências literárias, do seu estilo etc. Prefiro lembrar de sua presença na vida cotidiana dos jovens que se tornavam adultos nos anos setenta e oitenta e que olhavam para Moacyr Scliar como alguém que escrevia e publicava com uma regularidade ao mesmo tempo fascinante e duvidosa mas, sobretudo, tranquilizadora, pois tínhamos nele um escritor que escrevia e publicava enquanto nós, leitores, tocávamos nossa vida.

Ao morrer, aos 73 anos, Moacyr Scliar deixa uma legião de leitores. Parafraseando o que escreveu Nicholson Baker sobre John Updike, os leitores de Moacyr Scliar o conhecem “de um jeito que só se pode conhecer um escritor que já escreveu muito, inclusive muita coisa de que você já se esqueceu, retendo apenas um sentimento duradouro de amizade, que é talvez a emoção residual mais importante em toda a experiência literária”. Agora que ele já não escreve mais, só nos resta voltar ao vasto e inusitado edifício literário que ele ergueu com palavras de fabulosa imaginação.
M.S.V.

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