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Calvino e o “círculo do livro”


O escritor italiano Italo Calvino publicou Se um viajante numa noite de inverno em 1979. Já escrevi aqui que este é um romance sobre a escrita do romance. Fala de manuscritos perdidos, falsificações, editores, tradutores, estudiosos de literatura. Enfim, de todo aquele conjunto de agentes que compõe o campo literário.

O trecho selecionado a seguir parece antever a era da ficção amarrada com o merchandising. Até onde sei, o fenômeno não ocorreu com o romance, mas integra “naturalmente” a produção das novelas de TV.

A edição que possuo é do Círculo do Livro, editora que até a década de 1980 faturava alto com suas edições de best sellers vendidos por correspondência. Cheguei a comprar alguns livros por esse método, e ainda lembro que 99% do catálogo era de obras de auto-ajuda, romances açucarados e best sellers. As edições eram muito bem encadernadas e as capas coloridas, feitas para fisgar o leitor. 

Que essa obra de Calvino tenha sido publicada pelo Círculo do Livro é algo para o qual não tenho explicação. Escreve o italiano, a certa altura de seu meta-romance:

“Há alguns meses que Flannery entrou em crise; não escreve mais uma só linha; os numerosos romances que começou e pelos quais recebeu, de editores do mundo inteiro, adiantamentos em dinheiro que pressupunha financiamentos bancários internacionais, esses romances, que tinham contratos passados por intermédio de agências de publicidade internacionais, as quais já tinham especificado a marca das bebidas que tomariam as personagens, as localidades turísticas que frequentariam, quais seus modelos de alta costura, quais os fornecedores de mobiliário e de gadgets, esses romances estão incompletos, à mercê de uma crise espiritual tão inexplicável  quanto inesperada. Uma equipe de colaboradores secretos, especialistas na arte de imitar o estilo do mestre com todas as suas nuanças e maneirismos, mantém-se pronta a intervir para tapar os furos, arrematar e completar os textos redigidos pela metade, de tal modo que nenhum leitor possa distinguir entre as partes devidas à mão de um ou dos outros”. (Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno.  São Paulo, Círculo do Livro, s/d, p.116, trad. Margarida Salomão).
M.S.V.

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